Impulsionar o aborto, fomentar a eutanásia e outras frases falsas sobre a Agenda 2030 da ONU

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  • Publicado em 23 de agosto de 2022 às 21:04
  • Atualizado em 23 de agosto de 2022 às 21:21
  • 8 minutos de leitura
  • Por Ana PRIETO, AFP Argentina, AFP Brasil
A Agenda 2030 das Nações Unidas (ONU) é um plano para acabar com a pobreza no mundo e construir um futuro “no qual os direitos humanos sejam respeitados universalmente”. No entanto, em um vídeo visualizado mais de três mil vezes nas redes sociais desde 13 de julho de 2022, afirma-se que as verdadeiras intenções da iniciativa são, entre outras, estimular o aborto, a eutanásia e estabelecer um governo mundial único. Esses “planos secretos”, no entanto, não são reais e relacionam-se com velhas teorias conspiratórias sobre o organismo.

“AGENDA 2030 -  AJUDEM A DIVULGAR: Destruir a familia; Alimentos modificados; Vacinação forçada; Sem religiões; Fomentar LGBT; Modificação climática; Impulsionar o aborto; Governo único; Fomentar a eutanásia; Moeda única; Vigilância mundial; Controle dos recursos; Implantar microchips”, se lê em publicações que circulam no Facebook (1, 2) e Twitter (1, 2), e que incluem um vídeo de pouco mais de um minuto, no qual se pretende revelar “a verdade” acerca do documento da ONU. 

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Captura de tela feita em 19 de agosto de 2022 de uma publicação no Twitter ( . / )

Na sequência, apontam-se as supostas intenções da iniciativa internacional: “destruir a família; fomentar a ‘ditadura’” LGBTQIA+; alimentos modificados; vacinação forçada; sem religiões; modificação climática; impulsionar o aborto; fomentar a eutanásia; único governo; única moeda; vigilância mundial; controle dos recursos e implantar microchips”.

O que é a Agenda 2030?

A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável foi adotada pela Assembleia Geral  das Nações Unidas em setembro de 2015 como um roteiro para melhorar a qualidade de vida dos habitantes do planeta. A iniciativa aponta os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) para serem cumpridos até o ano de 2030, entre os quais se encontram a erradicação da pobreza, a erradicação da fome, a ação climática e a igualdade de gênero

Após mais de dois anos de negociações, os 193 Estados membros da ONU concordaram e assinaram voluntariamente o documento final da Agenda 2030. 

“Os ODS não são legalmente vinculantes”, esclareceu à AFP o professor Ian Hurd, diretor do Weinberg College Center para Estudos Internacionais e de Área da Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos. “São compromissos dos governos para acabar com a fome, reduzir a contaminação e melhorar a saúde, entre outros objetivos. A ONU não tem poder para obrigá-los a cumprir, nem na lei e nem na prática. São atitudes voluntárias por parte dos governos”

O relatório de 2022 sobre os progressos no cumprimento dos ODS, publicado em 7 de julho passado, não é otimista. “Covid-19, conflitos e mudança climática tiveram impactos ‘catastróficos’ nos progressos dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”, avalia a ONU na publicação. 

Como a ONU funciona? 

O vídeo viral sugere que a ONU toma decisões e as impõe aos Estados membros. Isso também é dito sobre a Organização Mundial de Saúde (OMS) e é falso, como já verificou o Checamos. 

“As Nações Unidas funcionam segundo as normas estabelecidas na Carta das Nações Unidas, disse Hurd à AFP. Uma norma-chave desse documento é que a ONU não pode “intervir em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado”.

“Isso proíbe a organização (e qualquer das suas agências relacionadas, como a OMS) de tomar ações que interfiram nos assuntos internos dos países”, explicou o especialista. 

Hélène De Pooter, professora de direito público na Universidade da Borgonha Franche-Comté e membro da Associação de Direito Internacional, vai na mesma direção: “Há uma regra fundamental que deve-se entender: no direito internacional não se pode fazer nada sem o consentimento dos Estados”, apontou à AFP. 

E isso é levado muito a sério, enfatizou Hurd. “Foi a razão, por exemplo, que deu a ONU para não intervir no genocídio de Ruanda em 1994, e é uma das razões pelas quais a OMS não pôde tomar medidas mais contudentes contra o covid-19 antes”

Hurd explicou que os casos nos quais a ONU se envolve em assuntos internos acontecem quando um governo solicita explicitamente sua ajuda, como na supervisão das eleições no Camboja em 1993 ou no estabelecimento de instituições de governo no Timor Leste entre 1999 e 2002. Também ocorre quando o Conselho de Segurança da ONU o autoriza, como foi o caso do ataque ao governo líbio em 2011.

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António Guterres fala na Conferência de Revisão das Partes do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares na sede da ONU em Nova York, em 1 de agosto de 2022 ( AFP / Ed Jones)

O vídeo: desinformação “flagrante”

O vídeo viral pouco tem a ver com a verdadeira Agenda 2030, que não busca “fomentar” a homossexualidade, o aborto ou a eutanásia (a crença de que os organismos internacionais têm como objetivo “reduzir” a população mundial é uma teoria conspiratória já verificada pelo Checamos), nem criar um “governo único” ou “modificar o clima”

Alejandra Faúndez, mestre em Gestão e Políticas Públicas da Universidade do Chile, e diretora da consultoria Inclusión y Equidad, disse à AFP que o vídeo viral “é quase idêntico à campanha dos grupos antidireitos do Chile em relação à nova Constituição”. Acrescentou que tais conteúdos (1, 2, 3) “mentem e desinformam de forma flagrante”

A seguir, a revisão de cada uma das afirmações do vídeo viral.

Alimentos modificados 

Essa suposta meta é uma distorção do Objetivo 2, que busca “erradicar a fome, alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição e promover a agricultura sustentável”.

O objetivo defende o “acesso seguro e igual à terra”, “bancos de sementes e plantas diversificados bem geridos”, a melhora da capacidade de produção agrícola nas zonas mais pobres do mundo e “corrigir e prevenir as restrições e distorções comerciais nos mercados agropecuários mundiais”

Vacinação forçada

Como explicou Hurd, as Nações Unidas não possuem autoridade para implementar políticas de saúde nos países membros. São os Estados que decidem quais vacinas ingressar ao calendário obrigatório.

O Objetivo 3 busca “garantir o acesso à saúde de qualidade e promover o bem-estar para todos em todas as idades”. O ponto 8 incentiva “a cobertura universal de saúde”, incluindo o acesso a “medicamentos e vacinas essenciais seguros, eficazes, acessíveis, de qualidade e a preços acessíveis para todos”

As atividades de pesquisa e de desenvolvimento das vacinas também são incentivadas. Não há alusão alguma à “vacinação forçada”.

Sem religiões 

No documento não consta o objetivo de eliminar as religiões, nem nada relacionado. 

Destruir a família, “fomentar a ditadura LGBTQIA+” 

Os ODS não fazem referência à instituição familiar nem, explicitamente, ao coletivo LGBTQIA+. Defendem princípios de igualdade e justiça (1, 2, 3), com o objetivo de “empoderar e promover a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente da idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra”

Mudança climática

Este ponto do vídeo viral parece sugerir que a ONU busca “modificar o clima”. É falso. O organismo pede aos Estados membros ações para frear a mudança climática, com especial ênfase no compromisso dos países desenvolvidos que são partes na Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. 

A AFP já verificou desinformação viral relacionada com a mudança climática (1, 2). 

Impulsionar o aborto, fomentar a eutanásia

No documento não são apresentados esses objetivos. Em vez disso, promove-se a conscientização sobre temas relacionados à saúde reprodutiva, tendo em conta que, segundo o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), “222 milhões de mulheres em países em desenvolvimento têm necessidades não atendidas de planejamento familiar”

Os ODS não “impulsionam o aborto”, mas sim “assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos”.

O AFP Checamos já verificou desinformação acerca do aborto e da eutanásia.

Único governo, única moeda

No documento, não são descritos esses objetivos nem nada relacionado a eles.

Vigilância mundial

O vídeo mostra nesse ponto duas câmeras de segurança apontando na mesma direção, sugerindo que a Agenda 2030 busca “vigiar a humanidade”. No documento, não existe esse objetivo nem nada relacionado a isso.

Controle dos recursos

Em seu Objetivo 12, a Agenda 2030 não busca “controlar recursos”, mas sim impulsionar modalidades de consumo e produção sustentáveis para que os recursos naturais, incluindo energia, água e alimentos, possam satisfazer uma demanda cada vez maior (prevê-se uma população de 9,6 bilhões de pessoas em 2050). 

Também defende-se “reduzir substancialmente a geração de resíduos, por meio da prevenção, redução, reciclagem e reuso”.

Implantação de microchips

Essa desinformação circula ao menos desde 2020 e já foi verificada pela AFP. Trata-se de uma distorção do ponto 9 do Objetivo 16, que estabelece “fornecer identidade legal para todos, incluindo o registro de nascimento”. A iniciativa quer dar uma identificação legal a crianças que não foram registradas por terem nascido em zonas empobrecidas ou em contexto de conflitos. 

O Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância, define a identidade jurídica como “o direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei”. “É um passo fundamental para garantir a proteção ao longo da vida e é um pré-requisito para o exercício de todos os outros direitos. No entanto, os nascimentos de um quarto das crianças menores de 5 anos em todo o mundo nunca foram oficialmente registrados”, informa.

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Manifestante durante um protesto contra a gestão da pandemia por parte do governo chileno, em Santiago, em 4 de setembro de 2020 ( AFP / Martin Bernetti)

Velhas teorias da conspiração

O conteúdo do vídeo viral não surpreende o professor Ian Hurd, que disse à AFP que, ao menos na política norte-americana, “a retórica e as teorias conspiratórias contra as Nações Unidas não são novas”

Citou o exemplo do congressista republicano Usher Burdick, que  qualificou a entidade de “ameaça profana” na década de 1950, e a Sociedade John Birch, que “pregou durante décadas a afirmação de que a ONU tomará o controle dos Estados Unidos com uma frota de helicópteros pretos”

Hurd detalhou que os mitos sobre “a conquista” do mundo por parte da ONU se fundem com outras histórias de “cabalas secretas” (1, 2) “em uma dinâmica que se remonta às conspirações antissemitas de inícios do século XX”

A AFP já verificou outros conteúdos de desinformação sobre o funcionamento das Nações Unidas e outros organismos internacionais (1, 2). 

23 de agosto de 2022 Corrige estilo gráfico do primeiro parágrafo

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