A OMS não está debatendo um tratado que prevê a perda de soberania dos Estados
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- Publicado em 27 de maio de 2022 às 22:41
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- Por Ana PRIETO, Nadia NASANOVSKY, Daniel FUNKE, Marie GENRIES, AFP Argentina, AFP Bélgica, AFP Estados Unidos, AFP Brasil
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“Esta é Christine Anderson, ela teve coragem de falar a verdade no Parlamento Europeu sobre o que é o Tratado de Pandemias da OMS: Perda da soberania, entrega de poderes para a elite não eleita, impossibilidade de responsabilizar alguém pelos danos aos cidadãos”, diz uma das publicações compartilhadas no Facebook e no Twitter, que citam um discurso da política alemã e atual integrante do Parlamento Europeu Christine Anderson.
“Está neste momento a ser preparado um Tratado internacional para que em futuras pandemias, não sejam os governos nacionais a estabelecer as normas em cada país, mas seja a OMS a decretar as regras à escala global”, assegura outro usuário.
Algumas das mensagens que circularam no Instagram também apontam que o objetivo do suposto acordo seria “assumir o controle das pandemias em nível global, eliminando a soberania dos países”.
Alegações similares também circulam em francês, espanhol e inglês.
Confusões e falsas alegações a respeito do acordo da OMS sobre pandemias
Em novembro de 2021, a Assembleia Mundial da Saúde (AMS), o principal órgão de decisão da OMS, formada pelos 194 Estados-membros da organização, concordou em começar a elaboração de um acordo sobre prevenção, preparação e resposta ante uma pandemia. Sob o lema “O mundo unido”, foi criado um Órgão de Negociação Intergovernamental (INB, na sigla em inglês) que irá redigir e negociar o acordo mencionado.
As alegações a respeito do tratado ganharam tração nas redes sociais durante a 75ª Assembleia Mundial da Saúde, que acontece de 22 a 28 de maio de 2022.
Entretanto, até o momento da publicação deste artigo, o acordo ainda não existia. O que efetivamente existia era um projeto cujo primeiro rascunho estava previsto para agosto de 2022, para ser debatido na 76ª Assembleia Mundial da Saúde de 2023 e, eventualmente, adotado em 2024.
The World Health Assembly Special Session #WHASpecial adopted the decision to establish an intergovernmental negotiating body to draft & negotiate a WHO convention, agreement or other international instrument on pandemic prevention, preparedness & response https://t.co/VGlecQrakm
— World Health Organization (WHO) (@WHO) December 1, 2021
Consultada pela AFP, Polly Price, professora de direito e saúde global na Universidade de Emory, nos Estados Unidos, disse que nenhum futuro tratado sobre pandemias poderia fazer com que os países cedam a soberania sanitária à OMS. Para isso, “seriam necessárias grandes mudanças na estrutura da ONU e da OMS, e não vi ninguém propondo algo assim”.
De fato, na seção de perguntas e respostas no site da OMS sobre um eventual acordo sobre pandemias, é explicado que, como ocorre com todos os instrumentos internacionais, “este seria determinado pelos próprios governos, que adotariam qualquer medida levando em conta suas próprias leis e regulamentos nacionais”.
“A OMS é uma organização formada por Estados. São os Estados que decidem o que faz a organização”, disse à AFP Hélène De Pooter, professora de direito público na Université Bourgogne Franche-Comté (UBFC), e integrante do comitê de Direito Sanitário Global da Associação de Direito Internacional (ILA).
“Existe uma regra fundamental que é necessário compreender: no direito internacional não se pode fazer nada sem o consentimento dos Estados (...) Se um Estado não deseja estar vinculado, não estará”, completou.
Em 17 de maio de 2022, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, referiu-se à difusão de "declarações enganosas” relacionadas ao tratado: “Infelizmente, tem existido uma pequena minoria de grupos que fizeram declarações enganosas e distorceram os fatos de propósito. Quero ser muito claro. O programa da OMS é público, aberto e transparente”.
Reforma do regulamento
Algumas das publicações que circulam em português também relacionam esse tratado - que ainda não foi redigido - a algumas emendas propostas pelos Estados Unidos ao Regulamento Sanitário Internacional (RSI).
O RSI, explica a Organização Pan-americana de Saúde (Opas), é um “instrumento jurídico internacional vinculativo para 196 países em todo o mundo, que inclui todos os Estados-membros da OMS”, e que tem como objetivo ajudar a comunidade internacional a prevenir e a responder a ameaças de saúde pública internacionais.
A OMS lançou um processo público para reformular o RSI. As emendas propostas estão sendo debatidas na 75ª Assembleia Mundial da Saúde.
Os Estados Unidos fizeram algumas sugestões de emendas, que foram respaldadas por 19 Estados e pelos 27 membros da União Europeia. Nenhuma das propostas, que ainda não foram aprovadas, se assemelha ao que relatam as publicações virais.
Na realidade, as principais mudanças sugeridas visam estabelecer esquemas mais claros de responsabilidade e reduzir o tempo de resposta ante “eventos que possam constituir uma emergência internacional de saúde pública”.
Ante a notificação por parte de um país desse tipo de situação, a OMS deve oferecer colaboração a ele, mas isso não constitui uma obrigação para os Estados, que podem se recusar a aceitá-la.
“Passadas 48 horas desde a oferta inicial de colaboração da OMS, a falta de um Estado- parte em aceitar a oferta de colaboração constituirá uma recusa em compartilhar as informações disponíveis com os demais Estados-parte”, indica a proposta dos Estados Unidos.
Em 23 de maio de 2022, em seu discurso na Assembleia Mundial, a representante norte-americana, Loyce Pace, disse que o objetivo das reformas propostas é “reforçar o RSI de 2005 para esclarecer funções e responsabilidades, aumentar a transparência e responsabilidade, compartilhar as melhores práticas e comunicar-nos em tempo real com nossos parceiros mundiais”.
“Não há nenhuma proposta para ceder a soberania de um país à OMS”, afirmou um porta-voz do organismo por email à AFP. “A OMS tem 194 Estados-membros, ou países, e são esses países que tomam as decisões soberanas”, acrescentou.
Olivier Corten, professor do Centro de Direito Internacional da Universidade de Bruxelas, disse à AFP: “Nos encontramos claramente em uma fase exploratória na qual não se decidiu nada de concreto, nem sequer foi proposto. Trata-se, simplesmente, de refletir sobre como completar, modificar ou desenvolver o RSI de 2005. Não há referência a um poder exorbitante da OMS”.