As imagens de um aborto usando pinças não representam um procedimento padrão no Brasil

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  • Publicado em 18 de maio de 2022 às 20:15
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  • Por AFP Brasil
Uma animação onde um bebê tem seus membros arrancados por pinças dentro de um útero foi compartilhada mais de 124 mil vezes nas redes sociais, acompanhada da alegação de que ilustraria um procedimento abortivo. O conteúdo, que circula desde pelo menos 2016, voltou a ser difundido após o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ter dito, em 5 de abril de 2022, que o aborto deveria ser visto como uma questão de saúde pública. Mas as imagens, que têm como origem uma organização norte-americana, não representam um procedimento padrão para a interrupção da gestação nos casos em que esse é autorizado e feito legalmente no Brasil, segundo explicaram especialistas à AFP.

“Pra vc q ACREDITA em Jesus Cristo como seu SALVADOR, mas defende ASSASSINO ” diz uma das publicações compartilhadas no Facebook (1, 2, 3). Conteúdo similar circulou no Twitter (1, 2).

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Captura de tela feita em 16 de maio de 2022 de uma publicação no Facebook ( . / )

No vídeo, é exibida em miniatura uma gravação do ex-presidente Lula (2003-2010) dizendo que o aborto “deveria ser transformado em uma questão de saúde pública e todo mundo ter direito e não ter vergonha”. O ex-mandatário, de fato, deu essas declarações no último dia 5 de abril durante um evento com parlamentares europeus em São Paulo.

No conteúdo viral, o vídeo de Lula é sobreposto a uma animação que mostra um bebê tendo pernas, braços, tronco e crânio arrancados por pinças dentro de um útero. A mesma animação, sem a fala de Lula, circula desde 2016 acompanhada da pergunta “Você sabe como é feito um aborto?”.

Origem das imagens

Uma busca reversa no Google pelas ilustrações conduziu a uma publicação em inglês no Facebook de março de 2018 feita na página do projeto Live Action, uma organização norte-americana contrária ao aborto.

A publicação contém um vídeo no qual um homem que se identifica como Anthony Levatino, “médico obstetra e ginecologista” que realizou “mais de 1.200 abortos”, afirma que parou de realizá-los para adotar um ativismo a favor da continuidade da gravidez.

Levatino já integrou o conselho diretivo da Associação Americana de Médicos Obstetras e Ginecologistas Pró-vida. Na publicação de 2018, também há um link para um site que contém a mesma sequência.

Na gravação vista na página da Live Action, Levatino explica e mostra detalhadamente um procedimento abortivo que chama de “dilatação e evacuação”, que se pratica, afirma, entre as semanas 13 e 24 da gestação - já considerada avançada.

Legislação sobre o aborto no Brasil

No Brasil, o aborto é considerado crime segundo o artigo 124 do Código Penal, punível com pena de reclusão de um a três anos.

Existem, no entanto, três situações nas quais a interrupção da gestação não é penalizada no país.

O artigo 128 do Código Penal brasileiro prevê que não se pune o aborto praticado por médico quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e nem quando a gravidez resulta de um estupro.

Além desses dois cenários, por uma decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, também não é punida a interrupção da gestação de fetos anencéfalos (que não têm cérebro), caso a mãe assim o deseje.

Até maio de 2022, a proposta legislativa mais avançada em torno da descriminalização do aborto no país é a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, protocolada em 2017 no STF, como explicou ao Checamos a antropóloga Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) e fundadora da organização Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

A ação ainda não foi julgada pela Corte. “Foram feitas audiências públicas em 2018 e ela está à espera do julgamento. Essa é a proposta mais avançada [no Brasil],e pede a descriminalização do aborto até 12 semanas [de gestação]. É semelhante ao que houve na Colômbia, no México”, afirmou Diniz.

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A petição inicial da ADPF 442 pode ser consultada no site do Tribunal. Na página 60 do documento, o texto pede que “seja concedida medida liminar para suspender prisões em flagrante, inquéritos policiais e andamento de processos ou efeitos de decisões judiciais (...) a casos de interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez”.

Ou seja, mesmo que tal proposta fosse aprovada pelo STF, o método de aborto descrito no vídeo viral não seria aplicado, já que ele é utilizado em gestações mais avançadas do que as mencionadas na petição, que somente descriminalizaria a interrupção de uma gravidez até a 12ª semana.

O aborto medicamentoso no Brasil

De maneira geral, existem duas formas de realizar uma interrupção da gestação: por meio farmacológico - com o uso de remédios - ou métodos cirúrgicos.

No Brasil, o Ministério da Saúde descreve técnicas e métodos recomendados para o abortamento seguro, “nas razões legalmente admitidas no Brasil”, na Norma Técnica “Atenção Humanizada ao Abortamento”. Em contato com a assessoria da pasta em maio de 2022, foi confirmado por telefone ao Checamos que esse documento segue vigente.

De acordo com as diretrizes, no primeiro trimestre da gravidez, consideram-se métodos aceitáveis: a aspiração intrauterina (manual ou elétrica), o abortamento farmacológico e a curetagem uterina.

Já em uma gestação no segundo trimestre - como é o caso ilustrado no vídeo viral - “o abortamento farmacológico constitui método de eleição, podendo ser complementado, após a expulsão fetal, com curetagem ou aspiração uterina, segundo as condições clínicas da mulher. A interrupção da gravidez por meio de microcirurgia ou microcesariana deve ser reservada para condições excepcionais”.

Não há, neste documento, menção à técnica Dilatação e Evacuação (D&E), vista no vídeo viralizado.

Segundo o ginecologista e obstetra Thomaz Rafael Gollop, professor da Faculdade de Medicina de Jundiaí e integrante da Comissão Nacional Especializada (CNE) de Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), grande parte das interrupções de gestação no Brasil são abortamentos medicamentosos usando o fármaco misoprostol.

Gollop disse ao Checamos em 9 de maio de 2022:

O Checamos também consultou o Protocolo número 69 da Febrasgo intitulado “Interrupção da gravidez com fundamento e amparo legais”, lançado em 2021. O texto não está disponível para o público em geral, mas foi enviado ao Checamos por meio de sua assessoria.

Nas páginas 23 e 24 do protocolo, é dito que a técnica dilatação e esvaziamento (D&E) é o método cirúrgico para interromper gestações acima de 12 a 14 semanas. A D&E tem menor frequência “de eventos adversos, tempo de tratamento e percepção de dor”, no entanto, “essa opção terapêutica ainda não está disponível no Brasil, pela inexistência de tocoginecologistas com o treinamento cirúrgico necessário”, lê-se no texto.

Segundo Marcos Nakamura, obstetra e pesquisador do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), a técnica descrita no vídeo, a chamada D&E, é um método que somente é realizado no Brasil de forma “excepcional”.

“Ainda que seja, de fato, uma forma bem comum de ser feita nos Estados Unidos, no Brasil não é o método preferencial. Eu raramente ouço alguém que tenha feito”, afirmou ao Checamos em 11 de maio de 2022.

E acrescentou: “Só depois de vários dias de tentativa com o misoprostol, e às vezes outros métodos disponíveis para indução do abortamento, é que se recorre à dilatação e extração, caso tudo isso falhe. Normalmente a gente usa o misoprostol porque ele promove uma contração uterina intensa e o feto morre nesse processo”.

Esse tipo de vídeo é “costumeiramente usado pela mídia e pela estratégia de tentativa de coibição dos abortos voluntários nos Estados Unidos. Há 40 anos que se tem esses vídeos mostrando de forma dramática os abortos de segundo trimestre, sendo que o aborto de segundo trimestre é uma exceção. O mais comum para uma mulher que deseja um aborto voluntário é fazer no primeiro trimestre”, continuou, se referindo aos países nos quais o procedimento é descriminalizado.

Nesse sentido, o ginecologista Thomaz Gollop também disse ao Checamos que são raros, no Brasil, os casos de interrupção legal da gravidez quando a gestação está avançada.

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Uma mulher segura um cartaz a favor da legalização do aborto no Rio de Janeiro, em 8 de março de 2022 ( AFP / Mauro Pimentel)

Métodos de abortamento cirúrgico no Brasil

Segundo Marcos Nakamura, os métodos cirúrgicos de interrupção da gravidez - quando aplicados - são mais utilizados em gestações de primeiro trimestre.

Como descrito na Norma Técnica do Ministério da Saúde, os métodos cirúrgicos utilizados no Brasil são a curetagem e a aspiração intrauterina (manual ou elétrica).

Essas técnicas, porém, tampouco se assemelham ao que é visto no vídeo viral, explicou ao Checamos a ginecologista e obstetra Gilka Paiva, professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Segundo a médica, a aspiração intrauterina, por exemplo, só pode ser realizada caso o material a ser aspirado seja pequeno. O método é feito com a introdução de uma espécie de seringa que faz uma aspiração a vácuo do conteúdo intrauterino: “Imagine um canudo. Nesse canudo, não há como passar partes fetais, ossos”.

Já a curetagem se assemelha a uma “raspagem”, feita com um instrumento que realiza a “limpeza” da cavidade uterina.

Em casos de gestações avançadas, ela é feita somente após a expulsão do feto com o misoprostol, explicou Paiva. O misoprostol é usado “para preparar o útero para que ele tenha contrações e expulse o feto, como em um parto. Só que é um feto que vai ser menor. E só depois é que se faz o processo de curetagem. Em geral, o que restou é material placentário, porque se não fizer isso a mulher fica sangrando sem parar”.

Ainda segundo Paiva, um procedimento como o mostrado no vídeo viral é contraindicado, pois existe o risco de causar uma perfuração uterina, no caso de um feto em uma gestação avançada que já tem membros e ossos.

A ginecologista ponderou que a técnica descrita na animação só seria empregada em casos de óbito fetal e quando a mãe não responde de forma alguma a medicamentos e outras técnicas de expulsão fetal.

O vídeo viralizado já circulou anteriormente no México, como checou a AFP.

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