A quitina dos insetos não os torna perigosos para o consumo humano
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- Publicado em 20 de agosto de 2022 às 17:50
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- Por AFP Canadá, AFP Argentina, AFP Brasil
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“Os insetos contêm quitina que não pode ser processada pelo nosso intestino. Mas a quitina é um polissacarídeo altamente palatável para câncer, parasitas, fungos e praticamente qualquer outra coisa que cause doenças”, dizem publicações compartilhadas no Twitter, Facebook e Telegram.
Algumas seguem com o texto, supondo que a substância não é apropriada para mamíferos: “A quitina faz parte da sua construção. Eles também contêm esteroides metamórficos, especialmente ecdyterona. Isto não é comida de mamíferos. Apenas as aves podem processar alimentos de insetos com segurança. O sistema digestivo das aves é completamente diferente do nosso”.
“Agora já sabem porque querem que comamos insetos”, concluem, enquanto outros usuários fazem referência ao Fórum Econômico Mundial, alvo constante de teorias da conspiração e de desinformação.
Conteúdo similar circula em espanhol, francês e inglês.
Insetos são consumidos por seres humanos há milhares de anos, inclusive no Ocidente, e ainda são consumidos em algumas culturas.
Embora existam potenciais riscos para a saúde associados ao consumo de insetos, a mensagem viralizada nas redes sociais contém várias declarações imprecisas, segundo especialistas consultados pela equipe de verificação da AFP.
Digestão da quitina
A quitina é o segundo biopolímero mais abundante na Terra depois da celulose. Encontra-se na casca de insetos, mas também em crustáceos, fungos, bactérias, leveduras e algas, e pode ser utilizada como fertilizante, aditivo alimentar ou para fins medicinais.
Mareike Janiak, autora de um artigo científico sobre os genes das quitinases (enzimas que quebram a quitina) publicado em 2018 na revista Molecular Biology and Evolution, disse à AFP que, embora a quitina não seja totalmente digerível, isso não a torna perigosa para a saúde.
“Os biólogos pensaram por muito tempo que os mamíferos não produzem uma enzima capaz de quebrar a quitina, mas isso não significa que um inseto não possa ser processado pelo intestino”, enfatizou em um e-mail em agosto de 2022.
Segundo Janiak, a quitina é semelhante à celulose que compõe a parede celular de muitas plantas as quais o corpo humano não consegue decompor por não ter a enzima adequada.
“Continuamos a comer alimentos como aipo, e é saudável para nós”, disse a pesquisadora.
Ainda que algumas partes das verduras não sejam digeríveis, a fibra insolúvel que elas contêm é benéfica.
“Nossos intestinos extraem nutrientes de verduras e removem fibras não digeríveis, permitindo que os alimentos se movam através de nosso trato digestivo e que as fezes sejam saudáveis”, explicou Janiak. “A falta de fibra insolúvel pode causar prisão de ventre, por exemplo”.
O trabalho de Janiak mostrou que os primatas — a ordem de mamíferos à qual pertencem os seres humanos —, podem se beneficiar de uma enzima específica que lhes permite digerir a quitina contida nos exoesqueletos dos insetos, o que proporciona um importante fornecimento de nutrientes.
“Por muito tempo, pensamos que a quitina era como a celulose para os mamíferos: uma fibra insolúvel que passava pelo intestino enquanto a energia e os nutrientes eram extraídos do resto do inseto. No entanto, a descoberta da enzima ‘quitinase ácida de mamíferos’ nos estômagos de camundongos e morcegos desafiou essa suposição e sugere fortemente que alguns mamíferos podem realmente digerir a quitina”.
Ele acrescentou: “Os humanos, como muitos outros primatas, têm um gene funcional para essa enzima, então é possível que realmente possamos processar a quitina em nosso intestino. Dito isso, mesmo que não pudéssemos, a quitina simplesmente passaria pelo nosso corpo, assim como a celulose do aipo e outros vegetais”.
Por outro lado, uma revisão bibliográfica publicada em 2021 no Journal of Functional Foods afirma que “a quitina contém 90,6% da fibra alimentar total e pode ser definida como um componente alimentar funcional que agrega benefícios específicos aos alimentos, como a contribuição para a saúde do cólon e das artérias coronárias e como a redução do colesterol, entre outros”.
Ecdisterona
Segundo as publicações, os insetos contêm “esteróides metamórficos, especialmente a ecdisterona”. Os ecdisteróides são os hormônios esteróides dos artrópodes, nos quais regulam a descamação, a metamorfose e a reprodução. A ecdisterona pode ser usada para melhorar o desempenho esportivo e pesquisas mostraram que ela inibe o crescimento de células cancerígenas.
Para Dominique Bureau, professor do Departamento de Biociências Animais da Universidade de Guelph, no Canadá, é enganoso dizer que essas moléculas são necessariamente nocivas, já que “praticamente todos os tecidos ou alimentos derivados de animais contêm alguma quantidade de hormônios esteróides”.
“Leite, carne, fígado, etc., vão todos conter hormônios. Alimentos de origem vegetal, como muitas oleaginosas e leguminosas, vão conter precursores de hormônios esteróides (por exemplo, fitoestrogênios, como isoflavonas em produtos de soja)”, disse Bureau à AFP em um e-mail em agosto de 2022.
René Lafont, professor do Instituto de Biologia Paris-Seine da Universidade Sorbonne, na França, argumentou que, embora “essas moléculas estejam realmente presentes em pequenas quantidades em insetos”, elas estão “em quantidades muito maiores em plantas (fitoecdisteróides), em algumas que consumimos (espinafre, quinoa), e nesse caso, representam quantidades muito maiores de ecdisteróides”.
“Esses compostos não são tóxicos para os humanos e até têm propriedades anabólicas e antidiabéticas interessantes”, disse Lafont à AFP em um e-mail em agosto de 2022.
Dizer que os insetos “não são alimento para os mamíferos” é “categoricamente falso”, disse Janiak. Mamíferos como tamanduás, musaranhos e tatus se alimentam deles, alguns quase exclusivamente, explicou.
Ele observou ainda: “Muitos primatas comem insetos, incluindo muitos pequenos macacos (macacos-prego, macacos-esquilo, micos, etc.), társios, mas também chimpanzés, a espécie mais próxima da nossa”.
Nutrição e riscos para a saúde
Um estudo publicado em 2020 no NFS Journal concluiu que a qualidade nutricional de insetos comestíveis é “equivalente e às vezes superior à de alimentos de outra origem animal”.
“Isso somado ao fato de que os insetos comestíveis têm uma taxa de crescimento mais rápida, alta eficiência de conversão alimentar e requerem menos recursos para criação em comparação com o gado, deveria torná-los uma fonte de alimento de qualidade mais atraente, especialmente para populações rurais pobres em países em desenvolvimento”, diz o relatório.
No entanto, também aponta que, embora o consumo de insetos possa ser considerado seguro em países onde a entomofagia — consumo de insetos por humanos — é praticada, “não é o caso da maioria dos países desenvolvidos, onde a maioria dos consumidores se preocupa com sua segurança e, portanto, reluta em incluí-los na dieta”.
“A literatura científica sobre os aspectos sanitários dos insetos comestíveis é limitada. Por isso, são necessárias mais pesquisas para conhecer os riscos associados ao seu consumo, a fim de salvaguardar a saúde dos consumidores”, conclui o estudo.
O consumo de insetos é promovido como forma de aumentar a oferta de alimentos de forma sustentável diante do aquecimento global. No entanto, um relatório recente da agência da ONU para a alimentação e a agricultura, FAO, alerta que boas condições sanitárias devem ser garantidas na produção e consumo de insetos comestíveis.
O relatório observa que os riscos podem ser maiores para insetos selvagens que são comidos crus e que pessoas com alergia a mariscos não devem comer certos insetos.
Um artigo do famoso Guia Michelin de Boa Comida recomenda, como qualquer outro alimento, conhecer a origem dos insetos e cozinhá-los bem antes de consumi-los.