Imagem de vítimas de queda de avião da Voepass é usada para desinformar sobre vacinas anticovid
- Publicado em 29 de agosto de 2024 às 19:06
- 8 minutos de leitura
- Por Marion DAUTRY, AFP Belgrado
- Tradução e adaptação Ezzio RAMOS , AFP Peru , AFP Brasil
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“Estes são os 8 pesquisadores do câncer que morreram em um ‘acidente’ de avião no Brasil. Eles estavam investigando as ligações entre injeções de RNA e câncer turbo e queriam publicar seu trabalho, eles estavam a caminho de uma coletiva de imprensa!”, diz a legenda de publicações no Facebook, no Instagram, no Threads, no Telegram e no X.
A alegação é compartilhada junto a uma imagem em preto e branco com retratos de oito pessoas, seus nomes e uma breve biografia.
O conteúdo também circula em espanhol, francês, grego, holandês, alemão, sérvio e croata.
As mensagens circulam após a queda de um avião comercial da companhia Voepass em 9 de agosto de 2024. O voo partiu da cidade de Cascavel, no Paraná, com 62 pessoas a bordo, e tinha como destino o Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo. A aeronave, porém, caiu na cidade de Vinhedo, no interior de São Paulo.
No mesmo dia, o Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR) confirmou que quatro dos passageiros eram médicos cadastrados no estado paranaense. “Dra. Arianne Albuquerque Risso, Dra. Mariana Comiran Belim, Dr. José Roberto Leonel Ferreira e Dra. Sarah Sella Langer estavam a bordo do voo 2283, que causou a morte de 62 pessoas”, diz o comunicado.
Também foi publicada a lista completa de passageiros e membros da tripulação falecidos no acidente.
Declaração da Unioeste
Uma pesquisa reversa no Google Lens pela imagem compartilhada exibiu o registro original, publicado no Instagram pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), no dia 9 de agosto. A publicação informava que oito das vítimas do acidente aéreo eram professores ou ex-alunos da instituição.
A universidade também publicou um comunicado em seu site, acrescentando mais uma pessoa à lista, junto a uma biografia de cada uma das vítimas.
“A Unioeste teve a perda inestimável de 9 pessoas, sendo 4 professores, duas médicas e três ex-alunos”, afirmou em outro comunicado, após uma homenagem aos falecidos.
As nove vítimas vinculadas à Unioeste são Edilson Hobold, Deonir Secco, Raquel Ribeiro Moreira, José Roberto Leonel Ferreira, Sarah Sella Langer, Mariana Comiran Belim, Ana Caroline Redivo, Hadassa Maria da Silva e Gracinda Marina Castelo da Silva.
Imagem viral mostra apenas uma oncologista
A imagem compartilhada pela Unioeste não mostra oito “pesquisadores do câncer” – como afirmam os conteúdos virais. De acordo com as informações divulgadas pela instituição, registros de trabalhos publicados e verificação de perfis em redes sociais, a maioria das vítimas atuava em áreas e profissões diversas. Apenas a doutora Mariana Comiran Belim era oncologista.
O professor Deonir Secco era docente “do curso de Engenharia Agrícola do Campus de Cascavel”. Os registros de seus trabalhos publicados e de sua carreira não mostram evidências de pesquisas sobre câncer ou medicina. A imprensa paranaense informou que ele estava de licença e ia para a Alemanha.
Edilson Hobold era professor de Educação Física com “ampla experiência” em “Treinamento Esportivo e Pedagogia do Esporte”. Uma pesquisa no Google sobre os seus trabalhos publicados exibiu apenas temas relacionados a esportes, não sobre câncer.
José Roberto Leonel Ferreira era radiologista no Hospital Policlínica de Cascavel e em sua clínica particular. Tanto a página do Facebook quanto o site da clínica não mencionam que Ferreira trabalhou como “pesquisador do câncer ”, em vacinas de mRNA ou em “câncer turbo”. Ele havia se aposentado recentemente como professor da Unioeste.
A professora Raquel Ribeiro Moreira formou-se em Letras pela Unioeste e “atualmente era docente credenciada”. Ela trabalhava com temas como “análise de discurso, adolescentes em situação de risco social, livro didático, educação formal e profissionalizante e produção textual”. Uma busca no Google não encontrou resultados ligando a professora a pesquisas sobre câncer.
A Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) informou no dia 9 de agosto em sua conta no Facebook que Raquel Ribeiro Moreira e a professora de engenharia química Gracinda Marina Castelo da Silva – formada pela Unioeste – morreram no acidente junto com seus maridos.
Entre as vítimas também estava a ex-aluna Hadassa Maria da Silva, formada em Ciências Contábeis pela Unioeste, segundo esta universidade, e licenciada no curso de Mecânica da UTFPR, segundo o comunicado da instituição.
Sarah Sella Langer era pediatra e “participou de projetos de pesquisa com Imunoterapia sublingual na Dermatite Atópica e genética da Dermatite Atópica em pacientes brasileiros”. A Associação Brasileira de Alergia e Imunologia não mencionou que Langer trabalhasse com vacinas de mRNA ou “câncer turbo” em sua mensagem de condolências postada no Facebook em 9 de agosto.
Ana Caroline Redivo “formou-se em 2014 no curso de Administração no campus de Unioeste de Cascavel” e trabalhava como nutricionista. Não há indícios de que ela fosse “pesquisadora do câncer” em suas redes sociais ou no anúncio de seu falecimento em seu perfil no Instagram.
Já Mariana Comiran Belim era médica residente de Oncologia Clínica pela União Oeste Paranaense de Estudos e Combate ao Câncer (Uopeccan) e intensivista da Unidade de Terapia Intensiva Adulta do Hospital Universitário do Oeste do Paraná (HUOP).
Belim é a única médica mencionada na publicação viral que realmente trabalhou em uma área relacionada ao câncer. A AFP não encontrou nenhuma evidência em seu trabalho em relação a vacinas de mRNA e “câncer turbo”.
“Câncer turbo” não existe, afirmam oncologistas
O Hospital do Câncer Uopeccan, de Cascavel, confirmou em suas contas no Instagram e Facebook que a doutora Belim estava entre as vítimas do acidente aéreo, junto a outra residente de oncologia, não vinculada à Universidade Unioeste e que não foi citada nas publicações virais: a médica Arianne Albuquerque Estevan Risso.
Segundo reportagem da Oncology News Central, ambas estavam a caminho de uma conferência sobre câncer em Curitiba, organizada pela AstraZeneca. O congresso foi cancelado após a tragédia, segundo informaram diversas reportagens (1, 2, 3).
O CRM-PR também informou em comunicado que Belim e Estevan participariam de um congresso em São Paulo. Não foi especificado se os outros dois médicos, Sarah Sella Langer e José Roberto Leonel Ferreira, viajavam com elas ou iriam para uma conferência.
As publicações também mencionam a expressão “câncer turbo”, que não é uma nomenclatura médica. O termo surgiu após o início das campanhas de vacinação contra a covid-19 e foi promovido por ativistas antivacinação que alegavam que os novos imunizantes eram perigosos.
“Não me lembro de ter ouvido o termo 'câncer turbo' até recentemente”, disse à AFP David Gorski, codiretor da Iniciativa de Oncologia Mamária de Michigan, em janeiro de 2023. “Não aparece em nenhum artigo que pude encontrar no PubMed. É um termo inventado pelos antivacinas”, acrescentou.
A AFP realizou uma nova pesquisa usando o termo “câncer turbo” em inglês, em 22 de agosto de 2024, no PubMed, um repositório gratuito de ciências biológicas e referências biomédicas (citações, resumos e publicações médicas preprint e revisadas por pares). Não foi encontrado nenhum resultado.
“Não há evidências de que alguma vacina cause câncer”, declarou à AFP em 25 de março de 2024 a Agência Internacional para a Pesquisa sobre o Câncer (IARC), entidade especializada em câncer da Organização Mundial da Saúde, via e-mail.
Malin Sund, presidente do comitê de pesquisa da Fundação Sueca contra o Câncer e pesquisadora do câncer, explicou em um e-mail à AFP em 8 de abril de 2024 que, na literatura, não existe relação comprovada entre ter recebido uma vacina e o subsequente desenvolvimento de câncer devido a isso.
Bruno Quesnel, diretor de pesquisa e inovação do Instituto Nacional do Câncer da França, também disse à AFP em janeiro de 2023 que “não existe nenhum mecanismo confiável que pudesse explicar isso, não há nenhuma lógica biológica”.
O Checamos já verificou anteriormente a alegação de que as vacinas contra a covid-19 causam “câncer turbo” (1, 2) ou qualquer forma de câncer, bem como conteúdos desinformativos sobre a queda do avião em Vinhedo (1, 2).
Referências
- Comunicado do CRM do Paraná
- Lista das vítimas no acidente aéreo de Vinhedo
- Publicação da Unioeste no Instagram
- Comunicados no site da Unioeste (1, 2)
- Publicações do Hospital do Câncer Uopeccan (1, 2)