Estudo em camundongos não prova que vacinas anticovid da Pfizer provocam “câncer turbo”

Nenhuma ligação entre a vacinação contra a covid-19 e o desenvolvimento de câncer foi estabelecida na literatura científica, mas postagens nas redes sociais com dezenas de compartilhamentos desde 8 de julho de 2023 afirmam que uma nova pesquisa provou que o imunizante da Pfizer causa a doença. Isto é falso. O experimento citado nas publicações — no qual apenas um camundongo desenvolveu um tumor — tem inúmeras inconsistências e foi publicado em uma revista pouco confiável, disseram especialistas em câncer à AFP.

“Em um novo estudo belga de Sander Eens et al. eles injetaram 14 camundongos com 2 vacinas Pfizer COVID-19 mRNA. 2 dias após a 2ª dose de Pfizer, 1/14 camundongos (7%) morreram repentinamente, tiveram câncer turbo com infiltração de linfoma em muitos órgãos: fígado, rins, baço, pulmões e intestinos”, diz uma das mensagens compartilhadas no Facebook, no Telegram e no Twitter, agora chamado X.

O conteúdo também circula em inglês, espanhol e francês.

As postagens alegam que as vacinas contra a covid-19 levam ao “câncer turbo”, um termo que sugere tumores de crescimento rápido e que foi cunhado por aqueles que duvidavam da confiabilidade dos imunizantes.

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Captura de tela feita em 25 de julho de 2023 de uma publicação no Twitter ( .)

O artigo belga que embasa as publicações é intitulado “Linfoma linfoblástico de células B após reforço intravenoso de BNT162b2 mRNA em um camundongo BALB/c: um relato de caso”, e foi publicado na revista de acesso aberto Frontiers in Oncology, em maio de 2023.

A revista faz parte da lista de Beall, que elenca editoras e revistas potencialmente predatórias, ou seja, com probabilidade de publicar conteúdo não confiável e sem fundamento científico, muitas vezes mediante pagamento.

O experimento analisou se a vacina da Pfizer causa linfoma dando a 14 camundongos duas doses da injeção de RNA mensageiro (mRNA). Dois dias após a segunda dose, um dos camundongos “sofreu morte espontânea” e apresentou linfoma em vários órgãos.

O conteúdo viral diz que “o camundongo com câncer turbo não apresentou sinais clínicos de doença antes da morte súbita”, mas o estudo não demonstrou isso.

“Quando olhamos para os resultados representados na Figura 4, onde eles comparam a curva de crescimento dos animais — uma forma de medir se os animais são saudáveis ou não — vemos que o camundongo que eles vacinaram e que desenvolveu tumores é diferente de outros animais”, disse em 13 de julho Mathieu Gabut, pesquisador do Centro de Pesquisa do Câncer de Lyon (CRCL).

“Ele perde peso enquanto os outros ganham. Mas a mudança na massa corporal ocorre antes mesmo da primeira das duas injeções, entre a 5ª e a 6ª semanas”, explicou.

Isso é visto no gráfico abaixo — a linha vermelha mostra a curva de crescimento do camundongo falecido, que começou a perder peso antes de ser vacinado.

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Captura de tela feita em 17 de julho de 2023 da National Library of Medicine ( .)

Outras inconsistências

O resumo do artigo não afirma ter provado que a vacina causou o câncer. Os autores dizem que seu estudo de caso “aumenta os relatórios clínicos anteriores sobre o desenvolvimento de linfoma maligno após a vacina anticovid de mRNA, embora uma demonstração de causalidade direta permaneça difícil”.

Ainda que os estudos de caso possam informar, os cientistas se concentram em verificar se os resultados foram observados repetidamente, esclarece Bruno Quesnel, diretor de pesquisa e inovação do Instituto do Câncer da França.

Questionado sobre o artigo belga, Quesnel disse à AFP: “É impossível estabelecer a menor relação de causa e efeito em um modelo experimental como este. Para fazer isso, o experimento teria que ser repetido em várias coortes de ratos”.

Quesnel explicou que qualquer animal pode desenvolver tumores espontaneamente: “Os camundongos observados em laboratório não são exceção à regra”.

Pierre Saintigny, oncologista e pesquisador do Centro de Câncer Léon Bérard concordou com a avaliação, apontando dois estudos (1, 2) sobre tumores em camundongos. “Camundongos desenvolvem linfomas espontaneamente... os autores nem sequer discutem isso”, afirmou em 13 de julho.

Outras inconsistências no relatório foram levantadas por David Gorski, professor de Oncologia da Wayne State University, no estado norte-americano de Michigan.

Ele questionou por que os camundongos receberam a vacina através de uma veia da cauda, em vez de por via intramuscular, como é administrada em humanos, e avaliou que a dosagem aplicada nos camundongos era muito maior do que nos humanos.

Em uma publicação, ele observa: “O design era tão artificial com sua dosagem intravenosa de uma vacina não destinada a ser administrada por via intravenosa, além do uso de uma dose tão grande que, independentemente dos resultados do estudo, não seria aplicável a humanos”.

Vacinas são recomendadas

As organizações de saúde dos Estados Unidos e do Canadá recomendam as vacinas contra a covid-19 para pacientes com câncer, pois extensos estudos demonstraram (1, 2) que esses indivíduos correm alto risco de terem complicações em decorrência da covid-19.

O Instituto do Câncer dos EUA diz em seu site: “Não há evidências de que as vacinas contra a covid-19 causem câncer, levem à recorrência, ou levem à progressão da doença”.

Mais de 83% da população do Canadá recebeu pelo menos uma dose da vacina contra a covid-19. A Health Canada monitora os eventos adversos após a vacinação e nenhum sinal de alerta relacionado ao câncer foi identificado.

No Brasil, 86% da população tomou a primeira dose da vacina contra a covid-19. O Instituto Nacional de Câncer (Inca) também orienta que pacientes com câncer sejam imunizados. Na edição 48 da revista Rede Câncer, produzida pelo instituto, especialistas reiteraram a importância de vacinar esse grupo, que está mais suscetível a desenvolver casos graves da covid-19.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também monitora a segurança das vacinas aprovadas no Brasil, entre outros, por meio do sistema VigiMed, no qual profissionais de saúde e cidadãos podem registrar suspeitas de eventos adversos.

Em uma pesquisa no painel de notificações de farmacovigilância, foram encontrados sete casos suspeitos de eventos adversos de vacinas contra a covid-19 relacionados ao câncer. Porém, como é explicado no próprio site, “não estão disponíveis os resultados das análises técnicas realizadas na agência para atribuir ou não causalidade dos eventos aos medicamentos ou às vacinas”.

Referências

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