Nova versão de estudo não prova ligação entre vacinas contra a covid-19 e mortes

Quatro anos após a detecção da covid-19, as vacinas criadas para combater a doença continuam a ser alvo de desinformação. Em 2023, publicações afirmavam que um estudo “censurado” pela The Lancet provava que 74% das mortes após a imunização tinham sido causadas por problemas cardiovasculares derivados da vacina. Desde 22 de junho de 2024, centenas de usuários afirmam que uma nova versão desse estudo foi publicada em outra revista. Especialistas consultados pela AFP confirmaram que nenhuma das versões desta pesquisa prova que as vacinas causam morte súbita em massa.

“Um tsunami de evidências sobre os malefícios das vacinas contra a COVID-19. Em 2023, A LANCET censurou e cancelou um revolucionário estudo sobre lesões por vacina, e autopsias, 24 horas depois de 100,000 descargas”, começam posts no Facebook e no X.

“‘Descobri que acabou de passar pela revisão por pares e será publicado!’, diz o Dr. William Makis. ‘Foram analisadas 325 autópsias, 74% das mortes súbitas devido à vacina contra a COVID-19. Esta é mais uma mudança radical’, sublinhou”, seguem as legendas. 

O conteúdo também circula em espanhol

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Captura de tela feita em 2 de julho de 2024 de uma publicação no X (.)

A alegação é compartilhada junto ao vídeo de um evento realizado em 17 de junho de 2024 pelo Partido Conservador Unido de Alberta, no Canadá, onde William Makis, um dos autores do estudo, faz afirmações semelhantes às das publicações virais.

“No ano passado, alguns de nós enviaram um trabalho sobre lesões causadas por vacinas à The Lancet (...) Esse trabalho era sobre a maior série de autópsias do mundo: 325 autópsias de pessoas vacinadas contra a covid que morreram algumas horas, alguns dias ou algumas semanas após receberem a vacina contra a covid-19”, afirma Makis em inglês.

E acrescenta: “Fizemos uma revisão rigorosa destas autópsias e descobrimos que cerca de 74% dos casos de morte súbita foram causados ou relacionados com a vacina”.

Um estudo nunca publicado na The Lancet

O conteúdo viral afirma que o estudo elaborado por Makis e seus colegas, supostamente “censurado” pela revista científica The Lancet em junho de 2023, foi finalmente validado por pares da comunidade científica. 

No entanto, conforme verificado pela AFP naquela ocasião, o artigo intitulado “A Systematic Review of Autopsy Findings in Deaths after COVID-19 Vaccination” não foi publicado na revista The Lancet e, portanto, não poderia ser removido ou “censurado”, ao contrário do que é afirmado nas publicações compartilhadas nas redes sociais.

Na verdade, o artigo mencionado por Makis foi publicado em um repositório de preprints associado ao periódico, onde os pesquisadores podem enviar seus trabalhos durante a revisão por pares antes de uma eventual publicação. Desde 2018, a The Lancet colabora com a Social Science Research Network (SSRN) para oferecer aos autores um espaço de pré-publicação chamado em inglês de “Preprints with The Lancet”.

Contatado pela AFP, o grupo Lancet confirmou que o artigo havia sido removido desse repositório, alegando que a sua metodologia não sustentava as conclusões do estudo. O grupo também afirmou que os preprints “disponíveis através do SSRN não são publicações da The Lancet ou não estão necessariamente em revisão em uma revista da The Lancet”.

A nova versão do estudo original foi publicada em junho de 2024 na revista Forensic Science International. O artigo foi atualizado, afirmam seus autores, mas não é possível detalhar as diferenças entre a versão original e a nova, já que a versão de julho de 2023 não foi arquivada na íntegra.

Apesar desta nova publicação, a validade científica do estudo continua altamente questionável, segundo especialistas consultados pela AFP.

Autores conhecidos por espalhar desinformação

O perfil de três dos autores dos dois estudos: Roger Hodkinson, William Makis e Peter A. McCullough, já levanta questionamentos.

Peter McCullough é um cardiologista norte-americano que foi anteriormente verificado pela AFP por espalhar desinformação sobre as vacinas contra a covid-19. Suas alegações infundadas sobre os perigos das vacinas resultaram em ações disciplinares do Conselho Norte-americano de Medicina Interna (ABIM, na sigla em inglês).

Roger Hodkinson afirmou que a pandemia de covid-19 era uma “farsa”, em declarações amplamente compartilhadas nas redes sociais em 2020. Quanto a William Makis, ele já espalhou desinformação relacionada aos imunizantes anticovid e a sua aplicação.

Esses precedentes levam cientistas como Brian Ward, professor de Medicina Experimental que estuda os efeitos adversos dos imunizantes na Universidade McGill, no Canadá, a serem cautelosos e desconfiados do artigo citado nas publicações.

“A forma como eles usam a palavra 'independente' ali significa apenas que todos se sentaram em uma sala separada para chegar a uma conclusão pessoal antes de compartilharem entre si as suas classificações (em grande parte pré-determinadas)”, disse à AFP em 12 de julho de 2023.

Dois estudos que não permitem relacionar vacinação e mortalidade

A versão de 2024 do estudo apresenta uma primeira limitação “óbvia”, segundo o professor Mahmoud Zureik, especialista em epidemiologia e saúde pública e diretor da agência Epi-phare, que monitora os produtos de saúde na França.

O artigo, diz Zureik, trata de “28 casos de autópsia que estariam relacionados com a vacinação contra a covid. Normalmente, quando se trabalha com tão poucos sujeitos, isso é compensado com informações muito detalhadas sobre cada um deles: são conhecidas suas comorbidades, as circunstâncias precisas das suas mortes, mas os autores não fornecem essas informações”.

O estudo de 2023 também recebeu essa crítica de Zhou Xing, professor de imunologia na Universidade McMaster, no Canadá, que disse que a metodologia do artigo não leva em consideração o estado de saúde e a idade dos falecidos para explicar suas mortes após a vacinação.

Sobre o método de análise, o cardiologista Florian Zores disse à AFP no último 21 de junho: “Os autores buscam na literatura científica casos publicados de autópsias que mostram miocardite associada à vacinação. E encontraram... miocardite ligada à vacinação. Sem analisar o número de pessoas vacinadas nem o número de autópsias como denominador. Assim, encontram 100% do que procuram, mas isso não significa, como afirmam algumas pessoas nas redes sociais, que 75% das pessoas vacinadas tenham mortes súbitas”.

Como exemplo das falhas metodológicas, Zores aponta que dos 51 casos de miocardite relatados em um artigo sobre vacinação feito por pesquisadores japoneses e publicado em 2022, os autores do estudo divulgado nas redes mantiveram apenas os três casos de miocardite associados à vacina.

O professor Zureik também observa que os dois estudos de 2023 e 2024 da coautoria de Peter McCullough baseiam-se em outras pesquisas, cujos “próprios autores afirmam que não podemos deduzir de seu trabalho nenhuma relação direta entre a vacinação e a miocardite e, portanto, as mortes”.

Associação de vacinas com morte

A desinformação sobre as vacinas contra a covid-19, recorrente nas redes sociais, consiste muitas vezes em insinuar que existe um nexo causal entre a imunização e a mortalidade, ao interpretar erroneamente dados de farmacovigilância de autoridades de saúde. A AFP já verificou alegações sobre esse tema (1, 2, 3).

De forma geral, morrer após ser vacinado contra a covid-19, mesmo alguns dias depois de receber o imunizante, não significa que a vacina tenha causado o óbito. Além disso, os raros efeitos colaterais graves da vacinação, incluindo a miocardite, são monitorados e os benefícios da imunização superam os riscos da sua aplicação, como explicaram à AFP especialistas, médicos e pesquisadores (1, 2, 3).

Outros estudos também concluíram que as vacinas contra a covid-19 salvaram milhões de vidas. Uma análise do Imperial College London, publicada em 22 de junho de 2022, estimou que 19,8 milhões de mortes foram evitadas em 185 países ao longo de um ano, entre 8 de dezembro de 2020 e 8 de dezembro de 2021, graças à imunização contra a doença.

“O problema é dizer que as vacinas não têm efeitos adversos. Claro que têm, mas são poucos! Mas protegem contra o risco das formas graves da doença, não só para si, mas também para os outros”, explica o professor Zureik.

O especialista acrescenta ainda que “a vacinação contra a covid causa miocardite, mas o risco é muito baixo, já que são necessárias dezenas de milhares de doses para um único caso. Assim, com 7 bilhões de doses em todo o mundo, não podemos descartar que mortes por miocardite tenham ocorrido após a vacinação”.

A miocardite, uma inflamação do músculo cardíaco, é reconhecida desde 2021 como uma reação adversa que pode ocorrer após a vacinação contra a covid-19 com uma vacina de RNA mensageiro. 

Zureik detalha que “alguns dos casos relatados nos estudos de 2023 e 2024 ocorreram após vacinações que não utilizaram RNA mensageiro, no entanto, nenhum estudo até o momento demonstrou miocardite após tais vacinas”.

Referências

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