Estudo que relaciona 74% de mortes à vacina anticovid não foi revisado nem publicado na Lancet
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- Publicado em 31 de julho de 2023 às 16:21
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- Por Gwen ROLEY, AFP França, AFP Canadá, AFP Brasil
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“As vacinas contra a COVID-19 mataram um número considerável de pessoas e o governo encobriu o facto. Um estudo, publicado como pré-impressão, mostra que 74% das mortes após a vacinação são devidas à vacina”, diz a legenda de uma das publicações compartilhadas no Facebook, no Telegram e no Twitter, agora chamado X.
A alegação complementa que “este é o estudo mais prejudicial da pandemia, e foi publicado na revista The Lancet, tendo sido censurado em menos de 24 horas”.
O conteúdo viral também circula em francês.
No entanto, o artigo em questão, intitulado “A Systematic Review of Autopsy Findings in Deaths after COVID-19 Vaccination”, não foi publicado na revista científica The Lancet, mas em um repositório de preprints associado ao periódico onde os pesquisadores podem enviar seus trabalhos durante a revisão por pares.
Procurado pela AFP, o Grupo Lancet confirmou que o artigo foi retirado do servidor, citando uma metodologia que não permitia fundamentar as conclusões.
Diferença entre preprint e publicação
Comumente usado para designar qualquer trabalho de pesquisa tornado público, a palavra “estudo” abrange coisas um pouco diferentes, como a AFP explicou nesse texto em francês.
No mundo acadêmico, o termo “publicação” refere-se a estudos publicados em uma revista científica. Tradicionalmente, o estudo deve ser publicado em um título de prestígio, como, em medicina, The Lancet, The JAMA, ou The New England Journal of Medicine.
Antes de ser publicado, o estudo é chamado de preprint, fase na qual ele ainda não foi revisado por pares. O preprint é submetido a uma revisão, em que outros pesquisadores comentam o texto e, se necessário, pedem esclarecimentos e correções ao autor. Depois vem a decisão final de publicar ou não. O processo pode levar várias semanas.
Desde 2018, a The Lancet colabora com a Social Science Research Network (SSRN) para oferecer aos autores um espaço de preprint dedicado chamado “Preprints with The Lancet”.
“Um preprint é uma versão de um manuscrito científico publicado em um servidor público antes de qualquer revisão formal por pares”, diz o site da revista. “Os preprints não são revisados por pares e não devem ser usados para tomadas de decisões clínicas ou relatórios de pesquisa para um público leigo sem indicar que é uma pesquisa preliminar que não foi revisada por pares”.
Os preprints “disponíveis através do SSRN não são publicações da The Lancet ou não estão necessariamente em processo de revisão com um periódico da The Lancet”, reitera a revista.
No caso do estudo citado na publicação viral, os usuários que o compartilharam estão “confundindo pesquisas revisadas por pares, que tratam de ciência rigorosamente avaliada, com um repositório preprint, que é um local para onde os cientistas enviam seus trabalhos”, disse Sarah Everts, professora de Jornalismo Científico na Carleton University, em Ottawa, no Canadá.
Os preprints permitem que os pesquisadores publiquem rapidamente seus trabalhos, mas um artigo sempre deve ser avaliado por outros especialistas para garantir que as conclusões do estudo sejam bem fundamentadas e sem erros, explicou Everts em entrevista à AFP em 11 de julho de 2023.
No site do servidor, o artigo completo não está mais disponível. “Este preprint foi removido pelo Preprints with The Lancet porque as descobertas do estudo não são sustentadas pela metodologia do estudo. Preprints with The Lancet reserva-se o direito de remover um artigo que foi publicado se estabelecermos o fato de que ele violou nossa seleção de critérios”, lê-se.
O artigo
É possível ver o preprint no site Wayback Machine, que permite o acesso a publicações arquivadas de sites. Na seção de metodologia do artigo afirma-se que “três médicos revisaram independentemente todas as mortes” com base em “relatórios de autópsia e necropsia relacionados à vacinação contra a covid-19” publicados até 18 de maio de 2023, “e determinaram se a vacinação contra a covid-19 foi a causa direta ou contribuiu significativamente para a morte”.
No final, um total de 240 mortes (73,9%) foram “julgadas de forma independente como sendo diretamente devidas à vacinação contra a covid-19 ou por terem contribuído significativamente para ela. (...) É necessária uma nova investigação urgente para esclarecer” essas descobertas, dizem os autores.
Para Zhou Xing, professor de Imunologia da McMaster University, no Canadá, a metodologia do artigo não leva em conta o estado de saúde e a idade do falecido para explicar sua morte após a vacinação.
“A análise e a conclusão parecem incrivelmente ridículas e acho que não é preciso ser um especialista científico ou médico para detectar as principais inconsistências”, disse em um e-mail à AFP, em 12 de julho de 2023.
Dado o grande número de pessoas vacinadas contra a covid-19, as taxas de mortalidade são inevitavelmente maiores para os vacinados, independentemente da causa da morte, acrescentou.
O perfil dos três autores — Roger Hodkinson, William Makis, Peter A. McCullough — também levanta questões.
Peter McCullough é um cardiologista norte-americano que já foi verificado pela AFP por espalhar desinformação sobre as vacinas contra a covid-19. Suas alegações infundadas sobre os perigos dos imunizantes lhe valeram uma ação disciplinar do Conselho Americano de Medicina Interna (ABIM, na sigla em inglês).
Já Roger Hodkinson disse que a pandemia era uma farsa, afirmação amplamente divulgada nas redes sociais em 2020. Quanto a William Makis, ele já espalhou alegações infundadas de que médicos estavam morrendo devido às vacinas contra a covid-19.
Esses precedentes levam Brian Ward, professor de Medicina Experimental que estuda os efeitos adversos das vacinas na Universidade McGill, no Canadá, a ter cautela e desconfiança.
“A maneira como eles usam a palavra ‘independente’ aqui significa apenas que todos se sentaram em uma sala separada para chegar a uma conclusão pessoal antes de compartilhar suas classificações (em grande parte predeterminadas) uns com os outros”, disse em 12 de julho de 2023.
Mesmo removidos do site e acompanhados por uma mensagem sobre suas inconsistências, ou sua natureza errônea, os preprints continuam a se espalhar, observa Timothy Caulfield, professor de Direito e Política de Saúde da Universidade de Alberta, no Canadá.
“Eles entram no debate público e mesmo que sejam retirados, ou que suas falhas sejam destacadas, não importa”, acrescentou à AFP em 12 de julho de 2023. A remoção desses documentos, que Caulfield chama de “documentos zumbis”, alimenta o discurso da “censura”.
Associação das vacinas à morte
Recorrente nas redes sociais, a desinformação sobre as vacinas anticovid consiste, muitas vezes, em insinuar que existe um nexo causal entre a vacinação e a morte, ao interpretar erroneamente os dados de farmacovigilância das autoridades de saúde. A AFP dedicou muitos artigos de verificação a esse assunto.
Em geral, morrer após ser vacinado contra a covid-19 – mesmo alguns dias depois – não significa que a vacina tenha causado a morte. Além disso, os raros efeitos colaterais graves da vacinação contra a covid-19, incluindo miocardite, estão sendo monitorados e o benefício de ser imune à doença nessa fase supera os riscos, segundo especialistas, médicos e pesquisadores ouvidos pela AFP.
Outros estudos também concluíram que as vacinas contra a covid-19 salvaram milhões de vidas. Uma análise do Imperial College de Londres, publicada em 22 de junho de 2022, avaliou que 19,8 milhões mortes foram evitadas em 185 países ao longo de um ano, entre 8 de dezembro de 2020 e 8 de dezembro de 2021, graças à vacinação.