Relatório afirma falsamente que vacinas contra a covid-19 causaram 17 milhões de mortes no mundo

Estudos ao redor do mundo e autoridades de saúde apontam que as vacinas contra a covid-19 salvaram milhares de vidas, mas publicações visualizadas mais de 70 mil vezes nas redes sociais desde 21 de dezembro de 2023 compartilham a conclusão de um artigo acadêmico indicando que 17 milhões de pessoas morreram devido aos imunizantes. Contudo, agentes globais e especialistas em saúde afirmaram à AFP que a pesquisa analisou erroneamente os dados e que somente uma pequena porcentagem de mortes entre imunizados pode ser atribuída às vacinas. 

“Um estudo conjunto revela que as injeções mRNA já ma.ta.ram 17 milhões de pessoas, numa correlação quase inacreditável entre os períodos de campanha de vac|nação, e os imediatos ‘picos’ de m.or.tes por todas as causas”, descreve a legenda do vídeo que circula em postagens no Facebook, no Instagram, no Kwai e no X.

A alegação também circula em inglês e holandês

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Captura de tela feita em 3 de janeiro de 2024 de uma publicação no Facebook (.)

As publicações compartilham um trecho de uma entrevista de Denis Rancourt, Marine Baudin e Jérémie Mercier gravada em 19 de novembro de 2023 no evento International Crisis Summit IV na Romênia, como é possível observar no painel posicionado atrás deles. 

Os entrevistados citam os resultados de um estudo que produziram e afirmam: “Calculamos a toxicidade da vacina para todas as idades e, considerando o número de doses administradas em todo o mundo, concluímos que esta vacina teria matado 17 milhões de pessoas”

O estudo mencionado, elaborado por um grupo canadense chamado Correlation Research in The Public Interest, data de 17 de setembro de 2023 e lança dúvida sobre a imunização contra a covid-19, aplicada em mais de cinco bilhões de pessoas (1, 2) ao redor do mundo. 

O artigo analisa a mortalidade por todas as causas e as taxas de vacinação em 17 países do hemisfério sul, incluindo o Brasil, para afirmar que os imunizantes contra a covid-19 causaram a morte de uma em cada 800 pessoas que foram vacinadas. 

“Quantificamos que o vDFR [taxa de mortalidade por dose de vacina, na sigla em inglês] geral para todas as idades nos 17 países é de (0,126 ± 0,004)%, o que implicaria em 17,0 ± 0,5 milhões de mortes pela vacina contra a covid-19 em todo o mundo, a partir de 13,50 bilhões de injeções até 2 de setembro de 2023. Isso corresponderia a um evento iatrogênico em massa que matou (0,213 ± 0,006)% da população mundial (1 morte para cada 470 pessoas, em menos de 3 anos) e não evitou de forma mensurável nenhuma morte”, escreveram os autores na conclusão do relatório, que não foi revisado por pares, padrão ouro utilizado para conferir mais ética e qualidade às publicações acadêmicas.

Consultado pela AFP, o porta-voz da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tarik Jasarevic, afirmou em e-mail enviado em 3 de outubro de 2023 que as alegações do artigo “não estão corretas”.

A mesma visão é compartilhada por Amesh Adalja, pesquisador sênior do Centro de Segurança Sanitária da Universidade Johns Hopkins, que apontou para uma “grande distorção dos dados reais”.

“Os picos de mortalidade por todas as causas são provavelmente devidos ao aumento do vírus durante certos períodos e não têm nada a ver com campanhas de reforço” vacinal, assinalou em e-mail datado de 3 de outubro.

Análise incorreta dos dados  

Os autores afirmaram que, nos países analisados no relatório, “não há associação temporal entre a vacinação contra a covid-19 e qualquer redução proporcional” de mortalidade por todas as causas.

O Correlation Research in The Public Interest baseou suas conclusões nos números do World Mortality Dataset, do Our World in Data e em algumas outras fontes regionais. 

O estudo aponta corretamente que o excesso de mortes, aquelas registradas além do esperado em um período considerado normal, aumentou no início de 2022, após a adesão à vacinação contra a covid-19.

Mas Oliver Watson, pesquisador visitante da Escola de Saúde Pública do Imperial College London, disse à AFP que ao invés de provar que as vacinas contra a covid-19 causam a morte, o relatório simplesmente “correlaciona o lançamento da vacina com o aumento da mortalidade”, sem considerar outros eventos que poderiam ocasionar os picos. 

“Por exemplo, o estudo inclui vários países com ‘covid zero’, como Singapura e Nova Zelândia, que implementaram fortes confinamentos que impediram a propagação da covid-19”, disse em um e-mail à AFP em 4 de outubro.

E acrescentou: “Esses países, uma vez tendo atingido uma elevada cobertura vacinal, relaxaram os confinamentos e consequentemente tiveram um aumento nas mortes por covid-19 e na mortalidade, uma vez que as vacinas não são 100% eficazes, nem alcançaram 100% de cobertura”.

A Austrália também foi um país que adotou a estratégia “covid zero”, mas registrou um excesso de mortalidade significativa no final de 2021, à medida que a variante ômicron se espalhava, como informou a AFP. 

O artigo concentra suas análises exclusivamente no hemisfério sul, onde, segundo a pesquisadora Tara Moriarty, da Universidade de Toronto, registrou “taxas realmente elevadas por todas as causas de mortalidade antes do lançamento das vacinas”.

Essa tendência se manteve após a implementação da vacinação nos Estados Unidos e na Europa porque muitos países “não tinham acesso às vacinas”, acrescentou Tara. 

Excesso de mortes não tem relação com as vacinas 

De fato, houve alguns picos globais de excesso de mortes durante a pandemia de covid-19, mas, como indicado pela AFP, isso se deve às infecções causadas pelo vírus, e não pelos imunizantes.

“Na verdade, as vacinas provavelmente reduziram a mortalidade ao longo dos últimos anos”, disse Richard Watanabe, professor de Ciências Populacionais e Saúde Pública na Universidade do Sul da Califórnia, em um e-mail de 3 de outubro.

Em junho de 2022, um estudo publicado na The Lancet concluiu que, somente no primeiro ano de vacinação, a estimativa é de que foram evitadas as mortes de 19,8 milhões de pessoas ao redor do mundo. 

Dados dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos apontam que aqueles que receberam as doses de reforço da vacina têm menos risco de morrer pela doença do que aqueles que não se vacinaram. 

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(AFP)

Em contrapartida, as confirmações de mortes causadas pelos imunizantes contra a covid-19 são raras.

Na Austrália, por exemplo, a Administração de Produtos Terapêuticos identificou 14 mortes possivelmente ligadas às vacinas dentre mais de 68 milhões de doses administradas. 

“É importante ressaltar que não há evidências críveis de que as vacinas contra a covid-19 tenham contribuído para o excesso de mortes na Austrália”, disse um porta-voz da agência à AFP por e-mail em 5 de outubro. “O número de doses de vacinas administradas em 2022 foi aproximadamente metade do número aplicado em 2021, o que indica claramente que não existe uma relação temporal entre a vacinação e o excesso de mortalidade”.

Outro país citado no artigo é a África do Sul, onde as autoridades de saúde pública identificaram três mortes decorrentes da vacina entre mais de 38 milhões de doses administradas. Números semelhantes  foram reportados em outros países citados no estudo, como Nova Zelândia e Singapura.

Christian Marchello, gestor de vigilância e pesquisa de segurança de vacinas na agência de saúde pública Te Whatu Ora, afirmou à AFP em e-mail enviado em 9 de outubro que “não há evidências de que a vacinação seja responsável pelo excesso de mortalidade na Nova Zelândia”.

“Dados disponíveis publicamente mostram que quatro mortes na Nova Zelândia estão possivelmente ligadas a reações adversas após a vacinação contra a covid-19”, acrescentou.

No Brasil, que também é um dos países analisados no estudo, o Ministério da Saúde concluiu em junho de 2023 que 50 mortes “tiveram uma relação causal considerada como consistente com a vacinação”, ou seja, uma a cada 10 milhões de doses aplicadas. 

O órgão já se manifestou, inclusive, negando peças de desinformação que afirmavam ter havido mortes por miocardite no país em decorrência dos imunizantes.  

Os efeitos adversos da vacinação são monitorados pela pasta, assim como pela OMS e outras autoridades nacionais, incluindo casos de síndrome de trombose com trombocitopenia e miocardite.

Os CDC afirmam em seu site que aqueles que receberam os imunizantes “não correm mais risco de morte por causas não relacionadas à covid do que as pessoas não vacinadas”.

A AFP também entrou em contato com agências de saúde pública de outros países citados na análise, mas não obteve retorno até a publicação desta checagem.

O AFP Checamos já verificou diversas alegações que correlacionam mortes à vacinação contra a covid-19 (1, 2, 3).

Conteúdo semelhante foi checado pelo Estadão Verifica

Referências 

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