Pesquisadores não provaram que vacina anticovid provocou excesso de mortes no mundo

As vacinas contra a covid-19, disponíveis desde 2021, salvaram milhões de vidas, segundo autoridades sanitárias do mundo inteiro. Contudo, desde 4 de junho de 2024, publicações visualizadas mais de 164 mil vezes nas redes sociais compartilham a alegação de que um estudo recente publicado no BMJ Public Health mostraria que a vacinação teria causado um excesso de mortes no mundo. Mas o BMJ refutou tais afirmações em uma declaração pública, e especialistas explicaram à AFP por que tal conclusão não pode ser feita a partir do estudo, que não estabelece a alegação viral.

“Pesquisadores da Vrije Universiteit, em Amsterdã, sugerem que as vacinas contra a covid-19 podem ter contribuído para o aumento das mortes em excesso desde a pandemia. O estudo analisou dados de 47 países ocidentais e encontrou mais de 3 milhões de mortes em excesso desde 2020, informou o jornal britânico The Telegraph”, diz uma das publicações compartilhadas no Facebook, no Instagram, no Threads, no X e no Telegram.

Alegações similares circulam em francês, inglês e búlgaro

O conteúdo também foi enviado ao WhatsApp do AFP Checamos, para onde os usuários podem encaminhar mensagens vistas em redes sociais, caso duvidem de sua veracidade.

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Captura de tela feita em 18 de junho de 2024 de uma publicação no Facebook (.)

As publicações em português compartilham links para matérias de veículos como The Telegraph, Revista Oeste e Folha Destra.

Todos os conteúdos citam um estudo publicado no BMJ Public Health em 3 de junho de 2024, intitulado, em inglês, “Excesso de mortalidade em países ocidentais desde a pandemia de covid-19: estimativas de ‘Our World in Data’ de janeiro de 2020 a dezembro de 2022”. O BMJ, anteriormente chamado de British Medical Journal, faz parte do mesmo grupo editorial do BMJ Public Health, de acordo com seu site.

Os autores são três especialistas em oncologia pediátrica de dois hospitais holandeses, além de um pesquisador independente.

Contudo, a pesquisa de 12 páginas não estabelece a mesma conclusão que as publicações virais.

Excesso de mortalidade e a pandemia de covid-19

De acordo com o resumo da pesquisa, os profissionais utilizaram dados da plataforma Our World in Data, desenvolvida por pesquisadores de Oxford, para avaliar o excesso de mortalidade “como um desvio entre o número de mortes registradas em um país durante uma determinada semana ou mês de 2020 a 2022 e o número de mortes esperadas no mesmo país para o mesmo período em condições normais”.

O estudo conclui que “o excesso de mortalidade permaneceu elevado no mundo ocidental durante três anos consecutivos, apesar da implementação de medidas de confinamento e das vacinas contra a covid-19”.

“Isto levanta sérias preocupações. Os dirigentes governamentais e os líderes políticos devem examinar profundamente as causas subjacentes do persistente excesso de mortalidade”, analisam os autores.

Além disso, lamentam que “os governos sejam incapazes de publicar os seus dados de mortalidade com uma classificação detalhada das causas, embora essas informações possam ajudar a indicar se a infecção pela covid-19, os efeitos indiretos das medidas de confinamento, as vacinas contra a covid-19 ou outros fatores ignorados desempenham um papel subjacente”

Entretanto, os autores não chegam a uma conclusão direta sobre uma suposta ligação causal entre a vacinação e o excesso de mortalidade.

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Uma funcionária de uma farmácia em Ajaccio, França, prepara uma dose da vacina contra a covid-19 em 5 de outubro de 2023 (AFP / Pascal POCHARD-CASABIANCA)

Editor e especialistas desmentem alegações virais

Em 6 de junho de 2024, o BMJ publicou uma declaração no X, afirmando que o estudo havia sido mal interpretado. “Diversos veículos de comunicação alegaram que este estudo implica em uma relação de causa direta entre a vacinação contra a covid-19 e a mortalidade. Este estudo não estabelece nenhuma relação desse tipo”.

“Embora os pesquisadores reconheçam que efeitos colaterais sejam registrados após a vacinação, a pesquisa não apoia a alegação de que vacinas são um grande fator de contribuição para mortes excessivas desde o início da pandemia. As vacinas têm sido, na verdade, instrumentais na redução de doenças severas e morte associadas à infecção de covid-19”, apontou a revista.

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Captura de tela feita em 14 de junho de 2024 no X (.)

Após numerosas reações ao estudo, o BMJ anunciou em 13 de junho de 2024 que estava “examinando a qualidade da pesquisa e sua mensagem”.

A organização também explicou em um comunicado de imprensa, recebido pela AFP, que acrescentaria uma “declaração de preocupação” ao estudo.

John P.A. Ioannidis, professor do Departamento de Medicina da Universidade de Stanford e epidemiologista, disse à AFP em 13 de junho de 2024 que “as afirmações que visam atribuir o excesso de mortalidade especificamente às vacinas são uma extrapolação que não foi desenvolvida pelos autores do estudo, pelo que pude ler”.

“Acredito que, no final, as vacinas salvaram inúmeras vidas em geral: talvez não tantas quanto algumas pessoas acreditam (...), mas certamente não acho que mataram mais pessoas do que salvaram”, afirmou.

Hospital infantil de Utrecht se distancia do estudo

No comunicado de imprensa, o BMJ também indicou estar em contato com o Centro de Oncologia Pediátrica Princesa Máxima, ao qual são afiliados três dos quatro autores, que “já anunciou que está investigando a qualidade científica desse estudo”.

Em 11 de junho de 2024, a instituição baseada em Utrecht, nos Países Baixos, de fato publicou uma declaração indicando que estava se distanciando do estudo.

“Sérias questões surgiram em relação à publicação”, afirmou a instituição, que disse “lamentar profundamente que essa publicação tenha dado a impressão de que a importância das vacinações esteja em questão”.

A ideia inicial do estudo, de acordo com o hospital, “era examinar o efeito das medidas relacionadas à covid sobre, entre outras coisas, a taxa de mortalidade de crianças com câncer em países de baixa renda”. No entanto, “no decorrer da pesquisa, o foco mudou e seguiu em uma direção que consideramos muito distante da nossa especialidade, que é a oncologia pediátrica. Nós não somos especialistas em epidemiologia, nem queremos passar essa impressão”.

Em sua declaração, a instituição concluiu que “o estudo não demonstra de forma alguma uma relação entre vacinas e excesso de mortalidade, essa não é a conclusão explícita dos pesquisadores. Lamentamos, portanto, que essa impressão tenha sido criada”.

Outra instituição que divergiu dos autores do estudo, que afirmou ter o seu patrocínio, é a World Child Cancer, fundação de luta contra o câncer infantil. Em 12 de junho de 2024, a organização publicou uma nota em que declarou que havia sido “citada erroneamente como patrocinadora dessa publicação”.

Críticas nas redes sociais

O estudo holandês também foi muito criticado nas redes sociais, como na thread publicada no X por Jeffrey S. Morris, professor de Saúde Pública e Medicina Preventiva e diretor do Departamento de Bioestatística da Escola de Medicina da Universidade da Pennsylvania. 

“Esse artigo não fornece nenhuma prova de que as vacinas contra a covid-19 tenham aumentado a mortalidade”, afirmou Morris à AFP em 13 de junho de 2024.

“Tudo o que eles [os autores do estudo] fazem é demonstrar que as mortes em excesso não pararam em 2020, mas continuaram em 2021-2022, ‘apesar das medidas de confinamento e das vacinas’, e concluem que ‘isso levanta sérias preocupações’”.

“Eles não fornecem nenhuma prova direta de que as vacinas causaram um excesso de mortalidade, muito menos de que possam ter sido a causa principal. Simplesmente afirmam que as mortes em excesso podem ser explicadas por uma combinação de casos de covid, de consequências das medidas de contenção e das vacinas, e depois especulam sobre as formas como os confinamentos e as vacinas poderiam, em princípio, levar a um excesso de mortalidade, mas não fornecem nenhuma prova de que o tenham feito”, completou. 

John Ioannidis considera que o estudo é, “de forma geral (...), bem feito”, e cruza as estimativas de mortes excessivas já publicadas em um artigo do Proceedings of the National Academy of Science (PNAS), um jornal acadêmico revisado por pares da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.

A publicação mencionada pelo professor é intitulada “Variabilidade do excesso de mortes em países com diferentes vulnerabilidades de 2020 a 2023” e foi publicada em 29 de novembro de 2023.

O estudo distingue principalmente dois grupos de países: aqueles de renda alta, com pouca pobreza e sem grandes desigualdades de renda, onde há poucas ou nenhuma morte em excesso (ou mesmo um déficit de mortes) registrada entre 2020 e 2023, e outros países de renda mais baixa, ou com uma proporção substancial de pessoas em situação de pobreza ou de expressiva desigualdade social, onde há um “excesso de mortalidade muito importante durante esse período”.

“O que nós vemos aqui é o benefício (ou a desvantagem) de um sistema de saúde que pode (ou não) ter recursos, ser funcional e proteger os necessitados. Os países vulneráveis e seus sistemas de saúde (o que também inclui os Estados Unidos) foram desestabilizados pela pandemia e/ou pelas medidas sanitárias ligadas à pandemia”, explicou Ioannidis.

“Acredito que o desafio reside na interpretação dos dados de excesso de mortalidade. O artigo do BMJ propõe uma discussão amplamente equilibrada sobre os numerosos fatores potenciais que contribuem para explicar as mortes excessivas, entre os quais é muito difícil, senão impossível, determinar a contribuição relativa desse tipo de dados. Muitos fatores tendem a coexistir, tornando a tarefa ainda mais difícil”, assinalou.

A mortalidade excessiva observada desde 2020 no mundo é tema recorrente de desinformação

Segundo a ONU, ela ocorre principalmente devido à própria covid-19, seja diretamente, pelas pessoas afetadas mortalmente pelo vírus, como indiretamente, pela grande desestabilização do sistema de saúde que a crise sanitária sem precedentes causou no mundo inteiro.

Referências

Corrige a especificação de que o estudo foi publicado no BMJ Public Health, que faz parte do BMJ Publishing Group.
26 de junho de 2024 Corrige a especificação de que o estudo foi publicado no BMJ Public Health, que faz parte do BMJ Publishing Group.

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