Documentário associa falsamente a vacinação com o aumento de casos de autismo no Vietnã
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- Publicado em 29 de setembro de 2023 às 21:48
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- Por Long NGUYEN, AFP México, AFP Estados Unidos, AFP Brasil
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“Não havia autismo no Vietnã antes do Bill Gates”, diz o texto sobreposto ao vídeo no Facebook, Instagram, Telegram, Kwai e X (antes Twitter).
Conteúdo semelhante já havia circulado em anos anteriores, assim como em inglês, vietnamita e espanhol.
“O Vietnã não tinha nada parecido…não existia autismo em 1975, nos anos 2000, 2001, não existia isso. Quando o Vietnã assinou com a OMS, com o Fundo Monetário Internacional, o sistema bancário, Bill Gates e a Fundação Gates introduziram o programa de vacinação no Vietnã. Agora o Vietnã tem um aumento de mais de 300% no autismo”, diz, em inglês, o homem que aparece na gravação.
Segundo algumas publicações, ele seria Anthony Phan, médico que reside na Califórnia, nos Estados Unidos. A entrevista também foi divulgada na plataforma de vídeos Rumble e em sites (1, 2). Porém, Phan não é especialista em autismo, e autoridades sanitárias e especialistas disseram à AFP que suas afirmações são falsas.
“Não existe um vínculo entre a vacinação e o autismo no Vietnã ou em outros países”, disse Quyet Minh Nguyen, psiquiatra do Hospital Nacional de Crianças do Vietnã, em 31 de julho de 2023. “Dizer que a vacinação causa autismo não possui embasamento científico”, disse à AFP.
O transtorno do espectro autista (TEA) é um distúrbio do desenvolvimento. Os cientistas ainda estão investigando suas causas, que podem incluir fatores genéticos ou de outro tipo, explicou Nguyen.
Origem do vídeo
A sequência compartilhada nas redes sociais inclui uma marca d’água que indica que o trecho foi retirado do documentário “Vaxxed: From Cover-up To Catastrophe” (“Vacinado: do encobrimento à catástrofe”).
O filme foi dirigido por Andrew Wakefield, um médico britânico cuja licença foi revogada depois que se confirmou que ele falsificou dados em um artigo de 1998 que ligava o autismo com a vacina contra o sarampo, a caxumba e a rubéola (MMR). A revista Lancet se retratou do estudo anos depois, mas o publicado por Wakefield continua alimentando a desinformação sobre vacinas.
Cientistas rejeitaram repetidas vezes as afirmações de que o autismo esteja associado com a vacinação. Em 2002, por exemplo, um estudo realizado com 537.303 crianças dinamarquesas, 82% das quais que haviam recebido a vacina MMR, mostrou que o risco de autismo era o mesmo em grupos vacinados e não vacinados.
Em 2009, pesquisadores do Hospital Infantil da Filadélfia examinaram sete estudos que buscavam uma possível associação entre o timerosal, um conservante a base de mercúrio presente nas vacinas, e o autismo. Nenhum deles encontrou provas dessa relação. O The Journal of the American Medical Association publicou em 2015 um estudo com uma amostra de 90.000 crianças e confirmou que a vacina MMR não aumentou o risco de TEA.
Um estudo de 2019, que acompanhou 657.461 crianças dinamarquesas nascidas entre 1999 e 2010, indicou que a vacina MMR não aumenta o risco de sofrer autismo, não o desencadeia em crianças suscetíveis, nem se relaciona com o aumento de casos após a vacinação.
Taxas de autismo no Vietnã
Não existem estatísticas oficiais a nível nacional sobre as taxas de TEA no Vietnã, disse Cong Tran, professor da Universidade Nacional do Vietnã, à AFP, em 31 de julho de 2023.
O monitoramento do número de casos de TEA no país foi dificultado pelas mudanças que ocorreram no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), sobre o diagnóstico do transtorno.
Em 2013, a Associação Americana de Psiquiatria introduziu o diagnóstico geral único da TEA, que abrange quatro subcategorias que têm sido utilizadas desde 1994.
“A mudança também faz com que seja mais difícil comparar a quantidade de pacientes com autismo ao longo dos anos”, disse Nguyen.
Em 2021, pesquisadores de Saúde Pública da Universidade de Hanoi publicaram o que disseram ter sido o primeiro levantamento nacional sobre a prevalência da TEA no Vietnã, que encontrou que “1 a cada 132 crianças” teriam a condição.
“O TEA entre crianças de 18 e 30 meses no Vietnã tende a aumentar e é semelhante a esta taxa em outros países de rendimento médio”, concluiu a pesquisa.
Tran, que estuda o autismo há 20 anos, disse que a crescente conscientização sobre o TEA tem levado ao diagnóstico de mais crianças, mas “dizer que houve um aumento de 300% no autismo no Vietnã é um absurdo”.
Cong Tran também trabalha com muitos adultos de 30 a 40 anos que vivem com TEA. “Isso significa que o Vietnã definitivamente teve pacientes com autismo antes do ano 2000”, disse, refutando as afirmações do vídeo viral.
Vacinação no Vietnã
Em 2015, a Organização Mundial da Saúde certificou formalmente que o Vietnã tinha um sistema regulatório nacional totalmente equipado, garantindo a segurança e eficácia das vacinas produzidas e utilizadas no país.
O Programa Ampliado de Imunização do Vietnã ajudou a controlar o sarampo e a erradicar a poliomielite e o tétano neonatal, segundo o Fundo Internacional de Emergência para a Infância das Nações Unidas.
“Apesar de nenhuma vacina ser 100% segura, se tem demonstrado que as vacinas provocam poucos efeitos adversos”, disse a Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos, em comunicado de 2012.
O Vietnã recebeu apoio da Aliança Global para Vacinas e Imunização (Gavi), um programa que conta com a Fundação Bill & Melinda Gates como um dos seus principais doadores. Mas não há nenhuma evidência de que os programas de vacinação estejam relacionados com o autismo.
Quando perguntada sobre as afirmações que circulam nas redes sociais, a Fundação disse à AFP por e-mail em 25 de julho de 2023: “Podemos confirmar que essas afirmações são falsas”.
O AFP Checamos já verificou publicações semelhantes com desinformação sobre Bill Gates e sua Fundação (1, 2, 3), assim como sobre a vacinação (1, 2, 3).
Referências
- Estudos que descartam a relação entre o autismo e as vacinas (1, 2, 3, 4)
- Retratação da revista The Lancet sobre o artigo de Andrew Wakefield
- Estudo sobre o TEA no Vietnã
- Informe da Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos sobre as vacinas