O vídeo “Plandemic” contém afirmações falsas e enganosas sobre a COVID-19
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- Publicado em 20 de maio de 2020 às 18:20
- Atualizado em 2 de setembro de 2020 às 16:59
- 12 minutos de leitura
- Por Claire SAVAGE, AFP Estados Unidos, AFP Argentina, AFP Brasil
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“Este vírus foi manipulado”; “as vacinas mataram milhões”; “a vacina contra a gripe aumenta em 36% as chances de contrair a COVID-19”; “usar a máscara literalmente ativa o seu próprio vírus”; “sabemos que a hidroxicloroquina está funcionando bem”: estas são algumas declarações que Judy Mikovits e outras pessoas fazem no documentário de 26 minutos “Plandemic”, que tem sido amplamente compartilhado nas redes sociais.
Realizado pelo produtor e ex-modelo Mikki Willis Wiki, a primeira publicação em português do vídeo no Facebook, de acordo com a ferramenta CrowdTangle, data de 19 de abril deste ano. Desde então, já foi compartilhado mais de 4,4 mil vezes no Facebook (1, 2, 3, 4). A gravação também circulou no Instagram (1) e no Twitter (1, 2, 3, 4), inclusive com legendas em português. No YouTube, este vídeo está sendo apagado por infringir as normas de conteúdo da plataforma.
A sequência consiste, majoritariamente, em uma entrevista de Mikki Willis Wiki com a médica Judy Mikovits, que em 2009 ganhou a atenção da comunidade científica com um estudo aparentemente inovador, publicado inclusive na revista Science, sobre a síndrome de fadiga crônica.
No entanto, a pesquisa foi fortemente desacreditada dois anos depois, quando as descobertas de Mikovits e de sua equipe não puderam ser replicadas em nove laboratórios. Isto fez com que a Science se retratasse da publicação do trabalho.
A queda em desgraça de Mikovits se aprofundou quando foi brevemente presa em 2012, acusada de ter roubado elementos do laboratório onde havia realizado o estudo mencionado. Uma busca na base de dados da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos revelou que Mikovits não publicou, ou participou, da publicação de artigos científicos desde aquele ano.
As declarações do documentário
A equipe de checagem da AFP verificou várias afirmações que Judy Mikovits faz no vídeo viralizado. Veja a seguir algumas delas:
As vacinas mataram milhões de pessoas e não existem vacinas para nenhum vírus RNA (ácido ribonucleico) que funcionem
“Sabemos que as vacinas salvaram milhões, não mataram milhões”, assinalou à AFP o professor de Pediatria e Doenças Infecciosas da Faculdade de Medicina da Universidade de Washington em St. Louis Jason Newland.
O pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da Argentina (Conicet, na sigla em espanhol) Juan Manuel Carballeda, especializado em Virologia Molecular, concorda.
“Talvez seja uma das declarações mais insanas que já ouvi até hoje”, indicou à AFP. “Milhões de vidas humanas são salvas devido às vacinas para vírus de RNA. Penso na pólio, por exemplo, pronta para ser erradicada da face da Terra graças às vacinas Salk e Sabin. Outra vacina de sucesso, e a que mais se aplica no mundo, é a vacina da influenza, outro vírus de RNA”.
Um vírus ser de RNA faz referência a como ele guarda o genoma, explica o especialista.. “Os vírus de RNA guardam o seu genoma como RNA, e os vírus de DNA guardam-no como DNA [ácido desoxirribonucleico]. A diferença principal é que o RNA, por ser uma molécula bem mais instável que o DNA, tende a mudar mais. Ou seja, os vírus cujo genoma é RNA tendem a ter uma taxa de mutação mais alta que os vírus de DNA”.
“O sarampo também é um vírus de RNA e há uma ótima vacina para preveni-lo”, acrescentou à AFP o médico Jason McLellan, professor associado de Biociências da Universidade do Texas, em Austin. “Outros vírus de RNA para os quais há vacinas incluem os da raiva, rubéola e caxumba”.
O novo coronavírus “não é natural”
“Eu não usaria a palavra ‘criado’, mas não se pode dizer que ocorra naturalmente se foi por meio de um laboratório”, declarou Mikovits quando Willis Wiki lhe perguntou se acreditava que o novo coronavírus havia sido criado em um laboratório. “Está muito claro que este vírus foi manipulado [...] e isto foi o que o fez ser liberado, de maneira deliberada, ou não”, continua.
A afirmação de Mikovits, contudo, carece de respaldo.
“Não existe evidência nenhuma de que o SARS-CoV-2 seja um vírus criado em um laboratório”, disse à equipe de checagem da AFP o especialista em coronavírus Julian Leibowitz, da Faculdade de Medicina do Texas A&M.
O AFP Checamos já verificou outras afirmações de que o novo coronavírus foi criado em laboratório, patenteado pelos Estados Unidos, desenvolvido em um laboratório na China, ou vendido à China por um cientista.
O dinheiro que os Estados Unidos deram à China para estudar os coronavírus contribuiu para o surto
Mikovits afirma que o Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, comandado pelo médico Anthony Fauci - um dos membros atuais da equipe de resposta ao coronavírus da Casa Branca -, é, em parte, responsável pela pandemia do novo coronavírus, já que a agência financiou experimentos com coronavírus em um laboratório em Wuhan, na China.
Trata-se de uma afirmação enganosa.
“[Mikovits] diz que os Estados Unidos estavam trabalhando com Wuhan para estudar os coronavírus há anos, como se isso fosse uma grande revelação. Sim, é claro que estávamos fazendo isso: a China é um foco de coronavírus e faz sentido estudar essa família de vírus onde ela surge naturalmente”, disse à AFP por e-mail a médica Kathleen Montgomery, patologista da Universidade de Vanderbilt.
Efetivamente, “os coronavírus são uma ampla família de vírus”, segundo a descrição da Organização Mundial da Saúde (OMS). “São encontrados tanto em animais como em humanos. Alguns infectam o ser humano e sabe-se que podem causar diversas doenças, desde um resfriado comum até enfermidades mais graves, como a síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS) e a síndrome respiratória aguda severa (SARS)”.
Em resposta à declaração de Mikovits, o Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas afirmou à AFP por e-mail que a instituição “está focada em pesquisar como acabar com a pandemia de COVID-19 e prevenir mais mortes. Não estamos nos envolvendo nas táticas de alguns que tentam descarrilar os nossos esforços”.
Os hospitais recebem incentivos para dar diagnósticos de COVID-19
Mikovits também assinala no vídeo que nos Estados Unidos os hospitais recebem “13 mil dólares por parte do Medicare se [a doença detectada] for chamada de COVID-19”.
Medicare é o programa federal de seguro de saúde nos Estados Unidos para pessoas maiores de 65 anos, pessoas mais jovens com deficiência e pessoas com doenças renais em etapa terminal - insuficiência renal permanente que necessite de diálise, ou um transplante.
De acordo com o documentário viralizado, se o paciente usar um respirador o hospital receberá o triplo de dinheiro, e, por isso, Mikovits assegura que os médicos colocam os pacientes em respiradores desnecessariamente.
Mas isto é enganoso.
“Não queremos entubar ninguém, queremos que todos melhorem”, afirmou Jason Newland, da Faculdade de Medicina da Universidade de Washington à AFP. “Existe a ideia de que preferimos entubar para ganhar mais dinheiro. Mas essa não é a maneira que os médicos em geral trabalham”.
Montgomery concorda: “Não existe evidência que respalde a ideia de que os médicos estão diagnosticando incorretamente a COVID-19 devido a um incentivo financeiro”, declarou.
O Congresso dos Estados Unidos implementou a Leia de Ajuda, Alívio e Segurança Econômica pelo Coronavírus (Cares, na sigla em inglês) para ajudar uma série de setores da economia do país que tem sido atingidos pelos efeitos da COVID-19, incluindo alívio financeiro e operacional aos hospitais e outros provedores de emergência.
A seção 3.710 da Lei Cares aumenta o pagamento pelos casos de COVID-19 em 20% aos hospitais durante a duração da pandemia.
Este aumento “não é uma vantagem”, apontou um porta-voz do Medicare por e-mail à AFP, mas um passo para proteger a saúde dos pacientes e fornecedores durante o surto.
O Medicare geralmente paga mais por um paciente que precisa de um respirador do que por um que não precisa, inclusive antes da pandemia. “Os fornecedores do Medicare devem declarar com precisão os serviços prestados em função do diagnóstico do paciente”, continuou o porta-voz.
“Declarar um diagnóstico inexato estaria sujeito a reembolso e/ou outras possíveis acusações civis e penais por fazer declarações falsas”.
A hidroxicloroquina é o tratamento mais efetivo para tratar a COVID-19
O vídeo inclui várias afirmações falsas, ou enganosas, sobre a hidroxicloroquina.
O medicamento contra a malária, usado há décadas, está “funcionando muito bem” para os pacientes com a COVID-19, afirma um homem não identificado e com uniforme de médico que aparece aos 16 minutos e 30 segundos do documentário “Plandemic”.
Mas segundo disse Newland à AFP, não existem evidências para fazer tal afirmação. Um estudo publicado em 7 de maio de 2020 não informa sobre danos ou benefícios no uso da hidroxicloroquina em pacientes com a COVID-19.
Uma voz em off no vídeo diz: “Em uma pesquisa realizada com cerca de 2.300 médicos em 30 países, a hidroxicloroquina foi classificada como o medicamento mais eficiente para tratar o vírus”.
Porém isto é enganoso. Em uma entrevista concedida em abril ao programa “Fox and Friends”, Anthony Fauci se referiu a um estudo que revelou que de uma lista de 15 opções, 37% de mais de 6.200 médicos em 30 países indicaram que a hidroxicloroquina é o tratamento mais eficiente contra a doença.
“Não trabalhamos sobre como você se sente, trabalhamos com as evidências disponíveis”, disse. “Ao entendermos que é sugerido que ali pode haver um benefício, acho que devemos ter cuidado de não dar um salto enorme e assumir que esse medicamento é a resposta”.
As autoridades de saúde pública de vários países já assinalaram que são necessários testes clínicos para determinar a eficácia da hidroxicloroquina.
Mikovits também afirma no vídeo que a Associação Médica Americana (AMA) “disse que os médicos perderão a sua licença se usarem a hidroxicloroquina”, mas isso também é falso.
A única indicação da AMA relacionada à prescrição, ou distribuição, de medicamentos para a COVID-19 é uma declaração conjunta com a Associação Americana de Farmacêuticos e a Sociedade Americana de Farmacêuticos do Sistema de Saúde, disponível aqui.
A declaração diz: “O uso inovador de medicamentos aprovados pela FDA é um assunto que fica a cargo do médico, ou de outro profissional que os receita”.
A Administração de Remédios e Alimentos dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês) emitiu uma autorização de uso de emergência que permite aos fornecedores de atendimento médico receitar hidroxicloroquina para adultos que não podem participar de testes clínicos, juntamente com um guia de dosagem e administração.
As vacinas contra a gripe aumentam as chances de ser infectado pelo novo coronavírus
“As vacinas contra a gripe aumentam em 36% as chances de ser infectado pela COVID-19”, diz Mikovits na entrevista, citando um estudo realizado nos Estados Unidos - “Vacinação contra a influenza e a interferência entre a equipe do Departamento de Defesa durante a temporada de influenza 2017–2018”, disponível aqui.
Mas o médico Jason McLellan afirmou à equipe de checagem da AFP que os dados nos quais o estudo se baseia correspondem à temporada de gripe 2017-2018, antes que o novo coronavírus fosse detectado, o que ocorreu em dezembro de 2019. Por isso, “não se pode fazer afirmações sobre as vacinas contra a gripe e o SARS-CoV-2 / [e a sua doença] COVID-19”.
Os resultados mostram que os 7,8% estatisticamente significativo das pessoas que receberam uma vacina contra a gripe deram positivo para um coronavírus, em comparação com 5,8% das pessoas que não receberam uma vacina contra a gripe. Mas, segundo o especialista, os dados são correlatos, não causais, e o coronavírus em questão corresponde aos quatro coronavírus que causam o resfriado comum, não a COVID-19.
O médico Jason Newland, por sua vez, disse que se trata de “um vírus novo. A vacina contra a gripe não terá impacto algum, nem para o bem nem para o mal”.
Usar máscaras de proteção e luvas prejudica o sistema imunológico
Dois médicos que realizaram uma polêmica apresentação em 24 de abril criticando as medidas de confinamento no estado da Califórnia também aparecem no vídeo viral.
Um deles diz que as máscaras de proteção e as luvas pioram o sistema imunológico, enquanto o outro assegura que o seu uso reduz a “flora bacteriana”, aumentando as chances de contrair “infecções oportunistas”.
Mikovits, por sua vez, indica sobre isso: “Usar a máscara literalmente ativa o seu próprio vírus. Você fica doente pelas suas próprias expressões de coronavírus reativadas, e se acabar sendo o SARS-CoV-2, então você terá um grande problema”.
A diretora e médica do Centro LaMontagne para Doenças Infecciosas da Universidade do Texas, em Austin, Shelley Payne, indicou em um e-mail à AFP que “não há evidências de que as máscaras, ou luvas, reduzam a microbiota normal, ou predisponham as pessoas a infecções oportunistas”.
Embora a presença da microbiota seja importante para o desenvolvimento do sistema imunológico desde o início da vida e, de fato, ofereça proteção contra alguns patógenos oportunistas, “a microbiota não desaparece quando se usa luvas, ou máscara, e não é necessário se expor a micróbios adicionais do meio ambiente para manter a microbiota”.
Leibowitz disse que não conhece dados que sugiram que as máscaras enfraquecem o sistema imunológico. “De fato, em termos de infecções oportunistas, considero que diminuam o risco de infecção”.
Payne acrescentou que usar uma máscara não reativa o seu próprio vírus: o tecido simplesmente filtra as partículas do ar.
O AFP Checamos já verificou outras afirmações sobre o uso de máscaras durante a pandemia de COVID-19, desmentindo que ela cause hipóxia, ou falta de oxigênio no organismo.
Bloquear as praias impede o acesso a micróbios curativos no oceano e na areia
“Por que fechariam a praia?”, questiona Mikovits perto do final do vídeo, fazendo referência às medidas de distanciamento social tomadas nos Estados Unidos para evitar a propagação do novo coronavírus. “Existem micróbios curativos no oceano, na água salgada. É uma loucura”.
Mas isto é enganoso.
O acesso às praias foi fechado para promover o distanciamento social e evitar que as unidades de cuidados intensivos dos hospitais entrassem em colapso e, até agora, as medidas têm funcionado, declarou Newland. “Se tivermos um monte de pessoas aglomeradas nas praias locais, o risco é que uma grande quantidade de gente fique doente”.
Leibowitz disse que, “embora seja verdade que existem espécies secretoras de antibióticos no solo, isolar tais bactérias não é simples”.
Enquanto as pessoas mantiverem um distanciamento social adequado na praia, continuou, “as praias serão tão seguras, ou perigosas, como antes da COVID-19”.
E Newland acrescentou que embora a praia possa ter certa natureza curativa apenas por deixar as pessoas felizes, “agora não é o momento de aproveitá-las”.
YouTube e Facebook tomam medidas para apagar o vídeo
YouTube e Facebook estão apagando o vídeo de suas plataformas.
Referindo-se a uma das afirmações falsas de Mikovits, um porta-voz do Facebook disse por e-mail à equipe de verificação da AFP que “sugerir que usar uma máscara pode deixá-lo doente poderia provocar um dano iminente, por isso estamos apagando o vídeo”.
Um porta-voz do YouTube disse, por sua vez, que desde o início da pandemia tem havido políticas claras contra a desinformação a respeito da COVID-19 “e estamos comprometidos em continuar a dar informação oportuna e útil neste momento crítico”.
Em resumo, o vídeo viralizado “Plandemic”, protagonizado pela polêmica pesquisadora Judy Mikovits e realizado pelo ex-modelo e produtor Mikki Willis Wiki, contém informações falsas e enganosas sobre o surgimento da COVID-19 e seus métodos para prevenir a doença e tratá-la.
Esta verificação foi realizada com base em informações científicas e oficiais sobre o novo coronavírus disponíveis na data desta publicação.