Reportagem de TV italiana sobre vírus criado em laboratório na China não tem relação com a COVID-19
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- Publicado em 31 de março de 2020 às 20:45
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- Por AFP Brasil
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“Está aí a prova cabal do crime. Vírus de laboratório by China. Criação do Vírus Chinês foi mostrado na TV RAI da Itália em 2015, que alertou sôbre [sic] o perigo que a China estava criando”, diz uma publicação, compartilhada mais de 400 vezes no Facebook desde o último dia 25 de março.
A legenda acompanha uma reportagem, transmitida em 16 de novembro de 2015 na emissora de TV italiana RAI, na qual um apresentador afirma: “Cientistas chineses criaram um supervírus pulmonar a partir de morcegos e ratos. Serve apenas para fins de estudo, mas há muitos protestos. Vale a pena arriscar?”.
A alegação semelhante aparece em múltiplas postagens no Facebook (1, 2, 3), Twitter (1, 2) e YouTube (1, 2, 3), somando mais de 4 mil compartilhamentos e 54 mil visualizações.
A reportagem da RAI também foi publicada, em 25 de março, pelo ex-vice-premiê da Itália Mateo Salvini, com a informação de que seu partido, a Liga Norte, encaminharia uma “pergunta urgente” ao primeiro-ministro e ao ministro das Relações Exteriores do país sobre o assunto.
A matéria de 2015 não tem, contudo, relação com a pandemia atual de coronavírus.
O que diz a reportagem
A matéria, transmitida em 16 de novembro de 2015 no quadro sobre ciências de um telejornal da emissora de TV italiana RAI, o TGR Leonardo, detalha a maneira como pesquisadores chineses conseguiram criar um organismo modificado “alterando a proteína superficial de um coronavírus encontrado em morcegos” para que este gere uma síndrome respiratória aguda grave (SARS).
Segundo a reportagem, o vírus criado em laboratório poderia contagiar humanos, levando a um debate sobre se os aprendizados promovidos por experimentos deste tipo justificariam os possíveis riscos.
Uma busca no Google pelos termos mencionados na reportagem e o nome do programa levou a um artigo da agência de notícias italiana ANSA de 25 de março de 2020, no qual o diretor do quadro TGR Leonardo, Alessandro Casarin, explica que a reportagem foi baseada em uma publicação da revista científica Nature e que “há apenas três dias, a mesma revista deixou claro que o vírus sobre o qual o serviço relata, criado em laboratório, não tem relação com o vírus natural [que causa a] COVID-19”.
De fato, uma análise dos materiais publicados pela Nature em novembro de 2015 localiza um artigo intitulado, em tradução livre: “Vírus de morcego projetado gera debate sobre pesquisas arriscadas”.
Em março de 2020, uma nota foi acrescentada no topo do texto, afirmando: “Sabemos que essa história está sendo usada como base para teorias não verificadas de que o novo coronavírus que causou a COVID-19 foi projetado. Não há evidências de que isso seja verdade; os cientistas acreditam que um animal é a fonte mais provável do coronavírus”.
Após a reportagem de 2015 começar a ser associada ao novo coronavírus, o programa Porta a Porta, da mesma emissora de TV italiana, convidou um especialista para debater o tema. Na transmissão, o professor Fabrizio Pregliasco, especialista em Virologia da Universidade de Milão, classificou a possibilidade do novo coronavírus ter “escapado” de um laboratório como uma “teoria da conspiração”.
“Há, pelo contrário, confirmações de que se trata de uma origem natural, através sempre de uma variação de um vírus do morcego. O genoma que foi isolado mostra uma origem natural. Teórica, essa possibilidade entra nas possibilidades de complôs, de teorias da conspiração que são também ligadas ao fato que em Wuhan há um belíssimo laboratório de alta segurança onde acontecem estudos. Mas reforço que, na realidade, essa não seria a origem desse vírus”, afirmou Pregliasco, em tradução livre do italiano.
Origem do novo coronavírus
Um estudo publicado em 17 de março deste ano no período científico Nature reitera a informação de que o novo coronavírus tem origem natural. “Nossas análises mostram claramente que o SARS-CoV-2 não é uma construção de laboratório, ou um vírus manipulado propositadamente”, afirmaram os pesquisadores.
Como parte do estudo, os autores analisaram a estrutura genética do SARS-CoV-2, concluindo que, se houvesse manipulação genética em laboratório, a estrutura do novo coronavírus seria semelhante a de outros organismos existentes. “No entanto, os dados genéticos mostram irrefutavelmente que o SARS-CoV-2 não é derivado de nenhuma estrutura central de vírus usada anteriormente”, indica a pesquisa.
Esta possibilidade também é considerada como mais provável pela Organização Mundial de Saúde (OMS). “Atualmente, a origem do SARS-CoV-2, o coronavírus que causa a COVID-19, é desconhecida. Todas as evidências disponíveis sugerem que o SARS-CoV-2 tem uma origem animal natural e que não é um vírus construído”, explica a organização em seu site.
Os primeiros casos de infecção pelo novo coronavírus foram confirmados em dezembro do ano passado na cidade chinesa de Wuhan. A região, que chegou a registrar milhares de novos casos por dia no auge do surto, no fim de fevereiro, foi considerada no último dia 28 de março uma zona de “baixo risco” por uma fonte do governo local.
No restante do mundo, países intensificam as medidas de confinamento para controlar a doença, que deixou mais de 38 mil mortos até esta terça-feira, 31 de março.
Em resumo, são enganosas as publicações que afirmam que a reportagem 2015 da emissora italiana RAI comprova que o novo coronavírus foi criado em um laboratório na China. A matéria foi baseada em um estudo da revista científica Nature, que esclareceu que não há evidências de que o experimento retratado tenha relação com a pandemia atual. Uma análise posterior publicada no periódico britânico demonstra que o SARS-CoV-2 não foi fabricado em laboratório, ou produzido propositalmente.
Esta investigação faz parte do Projeto Comprova. Participaram jornalistas da AFP, da Exame e do SBT.