O uso de máscaras não priva células de oxigênio causando câncer de pulmão

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  • Publicado em 18 de fevereiro de 2021 às 21:14
  • Atualizado em 4 de março de 2021 às 13:47
  • 7 minutos de leitura
  • Por Marion DAUTRY, AFP Belgrado
  • Tradução e adaptação AFP Brasil
Postagens compartilhadas centenas de vezes no Facebook desde o começo de fevereiro asseguram que o uso de máscaras pode levar ao câncer, com base em uma citação atribuída ao falecido doutor Otto Heinrich Warburg de que células privadas de oxigênio se tornam “cancerosas”. Não há registro, contudo, de que o vencedor do Nobel de Medicina tenha dito esta frase, e especialistas concordam que o uso de máscaras não traz riscos à saúde.

“Todas as formas de câncer apresentam duas condições básicas; acidose e hipóxia (falta de oxigênio). Os tecidos cancerosos são ácidos, enquanto os tecidos saudáveis são alcalinos. Privar uma célula de 35% de oxigênio por 48 horas e ela pode ser cancerosa”, diz o texto da imagem presente em parte das publicações no Facebook (1, 2, 3). A citação é atribuída ao doutor Otto Heinrich Warburg, alemão vencedor do Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina que morreu em 1970.

Conteúdo semelhante também circulou em inglês, espanhol, hebraico e croata

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Captura de tela feita em 10 de fevereiro de 2021 de uma publicação no Facebook

A AFP conversou com vários cientistas que escreveram sobre o trabalho de Warburg, mas nenhum deles reconheceu a frase. Os pesquisadores também disseram que a afirmação viralizada não poderia ser concluída a partir da hipótese do médico.

O “efeito Warburg”

Otto Heinrich Warburg foi um fisiologista e bioquímico alemão nascido em 1883, cujo trabalho sobre a respiração das células foi pioneiro no estudo celular e de cânceres. Ele recebeu o Prêmio Nobel em 1931 “por sua descoberta da natureza e do modo de ação das enzimas respiratórias”.

“Warburg levantou a hipótese de que a respiração prejudicada (nas células) era uma das principais causas do câncer - não a falta de oxigênio”, disse à AFP a professora adjunta da Escola de Bioengenharia de Munique, Angela Otto.

O trabalho de Warburg foi posteriormente cunhado “o efeito Warburg”.

“Na presença de oxigênio suficiente, as células normais realizam a glicólise (quebra da glicose) e canalizam o produto final (piruvato) para o ciclo metabólico (ciclo do TCA), que está associado à cadeia respiratória (onde o oxigênio é necessário) para produzir a maior parte da energia necessária”, explicou Angela Otto por e-mail.

E continuou: “Quando o oxigênio se torna escasso (condições anaeróbicas), a energia também pode ser extraída aumentando a taxa glicolítica, com o produto final convertido em ácido lático - e isso é chamado de ‘glicólise anaeróbica’. Porém, as células cancerosas, além de manter a atividade da cadeia respiratória, também empregam a glicólise anaeróbia mesmo na presença de oxigênio suficiente, levando a uma alta produção de ácido lático, que é liberado pelas células. Isso hoje é chamado de 'efeito Warburg'”.

“Trata-se do fenômeno em que os cânceres absorvem uma grande quantidade de açúcar e fermentam o excesso de açúcar (semelhante a como a levedura fermenta açúcar para fazer álcool)”, resumiu em um email à AFP Jason Locasale, especialista em metabolismo do câncer e professor da Duke University.

“Seu papel na promoção do câncer ainda é um assunto para debate, mas provavelmente traz muitos benefícios para o crescimento de tumores”, opinou Locasale, acrescentando que as pesquisas ainda estão em andamento.

Citação não aparece no trabalho de Warburg

A afirmação de que “privar uma célula de 35% de oxigênio por 48 horas e ela pode ser cancerosa” não aparece em seu trabalho “The metabolism of tumors in the body”, publicado em 1926, nem em  “On the Origin of Cancer Cells”, de 1956.

Uma pesquisa no Google pela citação exata em português a localizou em um site sobre o universo, em uma perspectiva espiritualizada. Já a citação em inglês foi encontrada em sites comerciais que promovem dietas alcalinas ou tratamentos médicos alternativos. A frase não foi encontrada em nenhum site de conteúdo científico.

A possibilidade de Warburg ter formulado outra hipótese, afirmando que “privar uma célula de 35% de oxigênio por 48 horas e ela pode ser cancerosa” parece “pouco provável”  para Slobodan Devic, professor assistente da Universidade McGill e médico do Jewish General Hospital de Montreal.

“Se esta (outra hipótese) estivesse correta, tenho certeza de que todo o mundo científico saberia, inclusive eu”, garantiu o professor e autor do artigo “Warburg Effect - a Consequence or the Cause of Carcinogenesis?”, de 2016.

“Parece que parte da declaração postada foi retirada do relatório (editado) de Otto Warburg sobre sua palestra no Encontro do Prêmio Nobel em Lindau 1966 (Warburg, 1967), que pode ser encontrado em sites não científicos, muitas vezes no contexto de anunciar um certo tipo de terapia contra o câncer ”, indicou Otto.

Segundo ela, Warburg afirmou ter descoberto “por meio desses experimentos que a inibição de 35% da respiração de oxigênio já é suficiente para provocar essa transformação (células se transformando em glicólise anaeróbica devido à falta de oxigênio) durante o crescimento celular”.

Agora sabe-se que as células normais podem “ter uma alta taxa glicolítica e produzir ácido lático (por exemplo, células musculares)”. Mostrar um comportamento que Warburg chama de “metabolismo do câncer” não significa que uma célula se tornou um tumor.

Máscaras não causam falta de oxigênio grave

A professora Otto de Munique não vê “necessidade de preocupação” pelo uso de máscara quando se trata de fornecimento de oxigênio.

“Nossa captação de oxigênio pode ser levemente prejudicada por exigir mais esforços respiratórios (ao correr ou subir escadas). Mas isso está longe de sufocar as células por falta de oxigênio. Os níveis de oxigênio nos tecidos são muito variáveis, geralmente menores que no sangue, mas também dinâmicos, aos quais as células são capazes de se adaptar”, indica. 

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Mulher usa duas máscaras em Arlington, Estados Unidos, em 8 de fevereiro de 2021 (Olivier Douliery / AFP)

O pesquisador de câncer e professor de biologia Thomas Seyfried, do Boston College, fez uma avaliação semelhante: “Warburg mostrou que a deficiência de oxigênio pode prejudicar a respiração celular, aumentando assim a transformação neoplásica (o crescimento de tumores). Essas deficiências eram muito maiores do que 35% (...) Embora o uso prolongado de máscara possa restringir o oxigênio em algum grau, a restrição fica muito aquém das condições de deficiência de oxigênio que Warburg estudou”.

“Não há evidências de que o uso de máscara possa causar câncer, especialmente porque, se usada corretamente, não deve afetar muito a respiração”, complementa Locasale.

Nem hipóxia nem acidose

As checagens da AFP (1, 2, 3)  já desmascararam muitos mitos sobre o suposto risco de usar máscaras, incluindo as falsas alegações de que elas causam hipóxia (falta de oxigênio no corpo) ou acidose, ou que podem provocar câncer.

Vinita Dubey, médica do Toronto Public Health, disse à AFP por e-mail que, se usada corretamente, uma máscara de pano provavelmente não reduzirá o oxigênio o suficiente para que o usuário desmaie. “Em geral, uma máscara de tecido não se ajusta perfeitamente ao rosto. O ar ainda pode contornar a máscara e também os poros do material”, ao mesmo tempo que atua como uma barreira para pequenas partículas de vírus.

Mesmo o uso prolongado de máscaras N95, usadas por profissionais de saúde e projetadas para serem apertadas, “não demonstrou causar toxicidade de dióxido de carbono em pessoas saudáveis. Se o CO2 se acumular lentamente na máscara ao longo do tempo, os níveis são baixos e, geralmente, toleráveis”, garante Dubey.

O mesmo vale para as máscaras cirúrgicas. O epidemiologista do Instituto Nacional de Saúde da Colômbia, Carlos Pinto, explica que elas filtram gotas de saliva e mucosidade, “mas ainda permitem que o ar flua. Respirar CO2 em excesso é perigoso para o corpo. Contudo, as pessoas que usam máscaras de proteção cirúrgicas, ou de tecido, não correm nenhum perigo”, garante.

Sobre a acidose, Daniel Pahua, acadêmico de Saúde Pública da Universidade Autônoma do México (UNAM), expressou: “O uso de máscaras não provoca acidose, uma vez que estas servem para reter partículas sólidas, não para reter gases. Para estes tipos de exposições são necessários outros tipos de instrumentos com uma filtragem muito maior. Nem mesmo as N95 servem para reter gases”.

O médico Alfredo Silva, do Instituto Nacional do Câncer do Chile, assegurou à equipe de checagem da AFP que “não existe evidência científica que estabeleça um vínculo causal entre seu uso (de máscara) e o risco de alguma neoplasia maligna”.

Algumas postagens que sugerem que o uso prolongado da máscara pode gerar câncer argumentaram que a proteção criaria um ambiente propício à proliferação de bactérias ou mesmo uma acidose, o que causaria a doença. Mas especialistas consultados sobre essa afirmação indicaram que o surgimento de fungos ou bactérias pode ser evitada respeitando medidas de higiene e a duração das máscaras.

Em resumo, o premiado com o Nobel Otto Heinrich Warburg não afirmou que as células privadas de oxigênio causam câncer. Especialistas também confirmam que o uso de máscaras não traz riscos à saúde.

EDIT 04/03: corrige título de estudo de Warburg para "The metabolism of tumors in the body".

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