Refinarias brasileiras que estavam na Bolívia foram vendidas por 112 milhões de dólares

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  • Publicado em 2 de outubro de 2020 às 15:59
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  • Por AFP Brasil
Publicações compartilhadas mais de 323 mil vezes nas redes sociais desde 2018 sugerem que o ex-presidente Lula seria o responsável pelo valor do gás, pois ele teria doado uma refinaria à Bolívia e agora o Brasil pagaria mais caro na importação deste insumo. Esta alegação é, no entanto, falsa. Durante o processo de nacionalização da exploração do petróleo e gás da Bolívia, a Petrobras vendeu as suas duas refinarias que estavam em solo boliviano pelo valor de 112 milhões de dólares.

“O gás tá caro? Só pra lembrar que eu doei a refinaria pra Bolívia e agora a gente paga uma fortuna pra comprar gás deles”, indica o texto que acompanha uma fotografia do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), compartilhado milhares de vezes no Facebook (1, 2, 3) desde janeiro de 2018.

Esta imagem também viralizou no Twitter (1, 2) e no Instagram (1, 2) ao longo dos anos.

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Captura de tela feita em 29 de setembro de 2020 de uma publicação no Facebook

Uma busca no Google pelas palavras-chave “Lula doação refinaria Bolívia” mostra como resultado matérias publicadas entre 2006 e 2007 a respeito da decisão da Bolívia de nacionalizar a produção de petróleo e gás (1, 2, 3) e a posterior venda das duas refinarias brasileiras pelo valor de 112 milhões de dólares (1, 2, 3).

Em 1º de maio de 2006, o então presidente boliviano Evo Morales anunciou a estatização dos hidrocarbonetos bolivianos e o Exército tomou o controle dos campos petrolíferos do território.

Essa decisão tornava a empresa estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) responsável por estes campos e afetava as multinacionais que operavam no país, como Petrobras (Brasil), Repsol (Espanha), British Gas e British Petroleum (Grã Bretanha), e Total (França).

Este decreto estabelecia que as petroleiras que realizavam atividades de produção de gás e petróleo na Bolívia deveriam entregar a sua propriedade e produção de hidrocarbonetos a YPFB. Até que a situação das multinacionais fosse regularizada a distribuição de lucros pela produção seria de 82% para o Estado boliviano e 18% para as petroleiras que fizessem a exploração.

Mais de um ano depois, em 10 de maio de 2007, o governo da Bolívia e a Petrobras acertaram a compra das duas refinarias brasileiras por 112 milhões de dólares. O acordo previa o pagamento em duas parcelas - uma na assinatura do contrato e outra dois meses depois.

O Checamos entrou em contato com a assessoria de imprensa da Petrobras, que enviou uma nota da mesma data de maio de 2007 comunicando sobre a “venda da totalidade da participação acionária da companhia nessas refinarias pelo valor de 112 milhões de dólares”.

A Petrobras ainda especificou que o valor proposto “foi calculado com base no fluxo de caixa futuro, produzido por instituição financeira internacional independente, conforme práticas usuais dos negócios”.

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Refinaria da Petrobras em Palmasola, no departamento de Santa Cruz, em 3 de maio de 2006

A nacionalização dos hidrocarbonetos bolivianos ocorreu durante o último ano do primeiro mandato do presidente Lula, enquanto a negociação do pagamento com a Petrobras se concretizou no primeiro ano de seu segundo mandato (2007-2010).

O líder petista sofreu críticas na época por ter enviado uma nota oficial indicando que “a decisão do governo boliviano de nacionalizar as riquezas de seu subsolo e controlar sua industrialização, transporte e comercialização, é reconhecida pelo Brasil como ato inerente à sua soberania”.

A equipe de checagem da AFP conversou com Adriano Pires, sócio-fundador e diretor do Centro Brasileiro de Infra Estrutura (CBIE) e doutor em Economia Industrial, que explicou como funciona a precificação do gás: “Basicamente em função do preço do petróleo e do câmbio. Se o [preço do] petróleo aumenta, o preço do gás aumenta. Se o [preço do] petróleo cai, o preço do gás cai. Esse é o contrato que existe entre o Brasil e a Bolívia”.

Pires ainda explicou que o preço do gás não se relaciona com a venda de refinarias, ou doação, como mencionam as publicações viralizadas. “O gás é retirado do solo boliviano, não associado a petróleo, colocado, nesse caso, no duto Brasil-Bolívia, e vem para o Brasil. A relação da refinaria com o preço do gás é zero”.

“Mesmo que a Bolívia não tivesse comprado, não tivesse pago a refinaria, não tem absolutamente nada a ver, não tem relação nenhuma, preço de gás com refinaria”, destacou.

O Checamos entrou em contato com a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), que indicou que a “importação de gás natural, é autorizada pelo MME [Ministério de Minas e Energia] e que este publica um boletim com dados a respeito do assunto”.

De fato, no site do Ministério de Minas e Energia é possível encontrar boletins de todos os meses de acompanhamento da indústria de gás natural desde 2007.

Em 2018, quando as publicações começaram a circular, o boletim do MME apontou que a importação de gás boliviano sofreu uma queda de 17,9 para 13,6 milhões de m³/dia, sendo o volume médio importado no mês de dezembro de 2018 o menor desde maio de 2003. Nesse ano, 66% do volume total de gás natural ofertado ao mercado foi de origem nacional, enquanto 26,3% era de origem boliviana.

Este boletim ainda indica que de todo gás importado e ofertado ao mercado brasileiro, 76% correspondia à Bolívia.

No boletim mais recente, de junho de 2020, é possível constatar que apesar de importar uma quantidade significativa de gás da Bolívia (22%), a produção nacional correspondeu a 77,6% do volume total. Além disso, indica que o preço do gás natural importado pelo Brasil diminuiu de US$ 3,15/milhão de BTU em maio para US$ 2,70/milhão de BTU.

Em resumo, é falsa a afirmação de que o ex-presidente Lula doou uma refinaria para a Bolívia. As publicações, que circulam desde 2018 sugerindo que esta seria a explicação para o valor do gás, ignoram que as refinarias brasileiras que estavam na Bolívia durante o processo de nacionalização de hidrocarbonetos foram vendidas por 112 milhões de dólares após negociações de mais de um ano com a Petrobras.

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