As crianças amish não foram declaradas as mais saudáveis do mundo por não se vacinarem

As crianças da comunidade religiosa amish não são as mais saudáveis do mundo por não se vacinarem, como afirmam publicações com milhares de interações nas redes sociais desde 30 de março de 2024. As alegações se baseiam em um suposto estudo da organização Vaccine Safety Research Foundation (VSRF), mas a AFP não encontrou nenhum registro de tal trabalho e o diretor da entidade negou tê-lo elaborado. Embora alguns amish optem por não se vacinar, especialistas garantiram que a expectativa de vida e a incidência de doenças neste grupo são semelhantes às  da população em geral.

“As crianças mais saudáveis do mundo depois de rejeitar as vacinas das grandes farmacêuticas”, diz a legenda de publicações no Facebook, no Telegram e no X.

O conteúdo também circula em espanhol e inglês.

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Captura de tela feita em 1º de abril de 2024 de uma publicação no X (.)

Os amish são um grupo religioso estabelecido principalmente na América do Norte (Estados Unidos, México e Canadá). São cristãos que vivem do trabalho agrícola e aderem aos costumes tradicionais.

Em 2023, sua população nos Estados Unidos era estimada em 378.190 pessoas, com as maiores comunidades localizadas nos estados da Pensilvânia, Ohio e Indiana, de acordo com pesquisa publicada em um site que fornece informações acadêmicas sobre esta comunidade.

As comunidades amish seguem uma série de regras que visam separar seus integrantes do mundo exterior. Elas podem variar, mas geralmente incluem o repúdio a todas as “comodidades modernas”, como televisões, rádios, computadores ou carros; o uso de certos medicamentos; ou ainda a educação de ensino médio e o acesso à universidade.

Sem registro de estudo

As publicações compartilham o link para um artigo do Nexus News Feed. O site, por sua vez, credita o texto ao portal “The People’s Voice” – anteriormente chamado de News Punch, cujo conteúdo já foi checado pela AFP no passado (1, 2, 3).

O artigo cita como única referência um suposto estudo realizado pela organização Vaccine Safety Research Foundation criada por Steve Kirsch, empresário norte-americano cujas declarações também já foram verificadas pela AFP.

Esta organização divulga informações contra os imunizantes anticovid e Kirsch escreve em sua newsletter que “os dados mostram que as vacinas estão prejudicando a saúde dos norte-americanos e impulsionando a epidemia”.

Uma pesquisa no Google pelos termos “amish” e “crianças saudáveis”  em inglês não retornou a nenhum estudo que confirmasse essa correlação. Uma nova busca pelas mesmas palavras-chave na página do VSRF tampouco mostrou algo com este teor.

A nota citada nas publicações virais também indica que o suposto estudo concluiu que a taxa de mortalidade da covid-19 entre integrantes da comunidade amish é 90 vezes menor do que no restante da população dos Estados Unidos vacinada contra a covid-19.

Uma pesquisa no Google pela frase, em inglês, “A comunidade amish morreu 90 vezes menos que vacinados” exibiu um vídeo no YouTube, publicado em 24 de julho de 2023, no qual Steve Kirsch fala sobre o grupo religioso. A descrição do vídeo indica que as imagens foram feitas durante um discurso do empresário perante o Senado da Pensilvânia. 

Uma busca no Google pelas palavras-chave em inglês “Senado”, “Pensilvânia” e “Steve Kirsch” exibiu a gravação original, publicada em 9 de junho de 2023, na página do senador Doug Mastriano do Distrito 33 da Pensilvânia; trata-se de um painel médico no qual o Kirsch participou.

Em seu depoimento, Kirsch afirmou que conversou com pessoas da comunidade amish no condado de Lancaster e soube que apenas cinco membros do grupo morreram em decorrência do coronavírus. Isso, disse ele, levou-o a concluir que os amish “estavam morrendo a uma taxa 90 vezes inferior à taxa de mortalidade por infecção nos Estados Unidos”.

Kirsch afirmou ainda que as crianças amish não sofrem de câncer, diabetes, autismo, doenças autoimunes e uma variedade de enfermidades. “Você simplesmente não encontra nenhuma dessas doenças crônicas entre os amish”, declarou.

Questionado pela AFP sobre a publicação de um estudo que confirma que os amish são as crianças mais saudáveis por não se vacinarem, Kirsch afirmou por e-mail, em 25 de março de 2024, que o seu nome não aparece no artigo viral.

“Eu não fiz essa afirmação. Eu não tive NADA a ver com esse artigo”, afirmou.

No entanto, Kirsch manteve a sua declaração sobre a taxa de mortalidade da covid-19 na comunidade amish e compartilhou o link para o seu artigo que traz esse conteúdo. No entanto, a afirmação de que a taxa de mortalidade da covid-19 era 90% menor nesse grupo foi desmentida pela AFP nesta verificação.

Saúde das crianças amish

Vários especialistas confirmaram à AFP que não há registo de qualquer estudo que confirme que os amish são “as crianças mais saudáveis do mundo”.

Braxton D. Mitchell, um epidemiologista que trabalha com a comunidade amish há mais de 25 anos, disse que não tem conhecimento de quaisquer estudos que tenham comparado de forma abrangente a saúde das crianças desse grupo com a das crianças não amish. Alan R. Shuldiner, pesquisador da Universidade de Maryland, concordou com Mitchell.

Por sua vez, a epidemiologista Katrine L. Wallace acrescentou que esta afirmação “parece ter sido transformada a partir de alguns comentários de 2023 feitos por Kirsch de que, devido ao fato de as crianças amish ‘não estarem vacinadas’, elas tinham ‘zero casos’ de câncer, diabetes ou autismo. As descobertas científicas baseadas em pesquisas reais nunca seriam expressas em termos absolutos, como ‘o mais saudável do mundo’”.

Além disso, a especialista explicou que, embora os amish sejam conhecidos por seu estilo de vida austero, por fazerem refeições caseiras, evitarem exposição a telas, drogas, tabaco ou álcool, eles não têm uma expectativa de vida mais longa do que a população geral dos Estados Unidos.

Mitchell explicou que pesquisas realizadas por sua equipe de trabalho demonstraram que as taxas de mortalidade em adultos amish são aproximadamente as mesmas que na população em geral; por outro lado, em outro estudo, demonstraram que esse grupo tem taxas mais baixas de diabetes e hipertensão. “Atribuímos isso ao seu estilo de vida mais ativo”, explicou.

Quanto às crianças, acrescentou Mitchell, os estudos realizados confirmam que elas tendem a ser mais magras do que as não amish. “Consideramos que isso se deve ao seu estilo de vida ativo e ao uso mínimo de computadores e dispositivos eletrônicos”.

Alguns amish são vacinados

Todos os especialistas ouvidos pela AFP concordaram que, embora algumas comunidades não confiem nas vacinas, existem alguns grupos que, sim, se vacinam. 

Wallace informou que um estudo de 2011, publicado no Journal of Pediatrics, descobriu que apenas 14% dos amish entrevistados não vacinaram seus filhos.

“Eles se vacinam a uma taxa inferior à da população em geral, mas estão longe de ser uma população não vacinada”, disse Wallace.

Referências

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