Não há evidências científicas de que os Amish tiveram menores taxas de mortalidade por covid-19

O impacto das ações adotadas pela maioria dos países durante a pandemia de covid-19 é difícil de mensurar, mas numerosos estudos mostram que o uso de máscara e a vacinação foram eficazes para limitar mortes ligadas à doença. Mesmo assim, publicações divulgadas dezenas de vezes desde maio de 2023 afirmam que a taxa de mortalidade por covid-19 entre a comunidade religiosa Amish, que não adotou essas medidas, foi muito menor. Isso é enganoso: os dados disponíveis não permitem chegar a essa conclusão e mostram que os Amish foram, sim, afetados pela pandemia e registraram picos de morte.

“MAS COM OS AMISH, aquela população na América que só vive da agricultura, e que não se mistura com ninguém, e que não se vacinou, a % de mortes é 90% inferior à média americana atual!”, diz uma das publicações difundidas no Facebook. Alegações similares circulam no Twitter.

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Captura de tela feita em 7 de julho de 2023 de uma publicação no Facebook ( .)

Afirmações similares circulam em outros idiomas, incluindo francês e finlandês. Muitas publicações contêm um link para um artigo do site “People’s Voice” (anteriormente conhecido como “News Punch”), que já teve outros conteúdos verificados pela AFP.

Em português, alguns dos conteúdos têm como base um artigo do site Tribuna Nacional, que também já foi verificado anteriormente pela AFP.

Mas a alegação de que os Amish tiveram uma mortalidade muito mais baixa do que o restante da população norte-americana é enganosa, segundo pesquisadores ouvidos pela AFP: pelo contrário, os dados disponíveis tendem a mostrar que, desde o início das campanhas de vacinação anticovid em 2021, o excesso de mortalidade começou a diminuir na população norte-americana em geral, enquanto permaneceu alto entre os Amish.

Os Amish

Os Amish são uma comunidade religiosa cristã. Em 2022, sua população era de 373.850 pessoas, com as maiores comunidades instaladas nos estados norte-americanos da Pensilvânia, Ohio e Indiana, segundo um levantamento publicado em um site que contém informações acadêmicas sobre os Amish.

As comunidades Amish seguem uma série de regras que visam separar seus integrantes do mundo exterior. Elas podem variar, mas geralmente incluem o repúdio a todas as “comodidades modernas”, como televisões, rádios, computadores ou carros; o uso de certos medicamentos; ou ainda a educação de ensino médio e o acesso à universidade.

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Crianças de uma comunidade Amish deixam a escola perto da cidade de Leola na Pensilvânia, nos Estados Unidos, em 1º de novembro de 2011 ( AFP / Mladen Antonov)

Artigo de 2021 e cifras mal interpretadas

Algumas publicações em português contêm um link para um artigo no site “Pennlive”, datado de 29 de março de 2021.

Esse site inclui uma reportagem da agência norte-americana Associated Press (AP), que indicava que 90% das famílias Amish da região de Lancaster, na Pensilvânia (que abriga a maior comunidade Amish), teriam então contraído covid-19.

É citado que isso poderia ter criado uma “imunidade de rebanho” nessa comunidade, mas os cientistas ouvidos alertavam que essa imunidade poderia ser apenas temporária e não os impediria de pegar a doença novamente ou sofrer de formas graves da covid-19.

O artigo também cita autoridades locais que indicaram, sem oferecer números precisos, que um "grande número de mortes" havia sido declarado no momento dessa contaminação na comunidade, provavelmente em conexão com o coronavírus, ao contrário do que é citado nas redes sociais.

Braxton Mitchell, epidemiologista do Departamento de Medicina da Universidade de Maryland que estuda as populações Amish e particularmente a de Lancaster, disse à AFP que não há evidências para estabelecer que a taxa de mortalidade seja menor entre essa população.

“Que eu saiba, não existem dados que mostram uma taxa de mortalidade menor por covid-19 entre os Amish, que teria sido consequência da imunidade de rebanho”, declarou.

Sem evidências de uma menor mortalidade

Não há "nenhuma evidência para apoiar as alegações" de que há 90 vezes menos mortes relacionadas à covid-19 nas comunidades Amish em comparação com o restante da população norte-americana, disse Steven Nolt, professor de história e estudos anabatistas na Faculdade Elizabethtown, à AFP em 16 de junho. Ele acrescentou:

Não existem números oficiais sobre infecções ou mortes entre a população Amish, afirmou o pesquisador, já que os registros médicos não indicam a religião dos pacientes.

Braxton Mitchell acrescentou que o número de testes realizados nessas comunidades é muito baixo e, portanto, nem todas as infecções foram relatadas.

Em um estudo publicado em 2021, os pesquisadores da Universidade da Virgínia Ocidental fizeram um levantamento sobre o excesso de mortalidade nas comunidades Amish e menonitas, segundo obituários publicados em jornais em 2020 — ou seja, antes do início das campanhas de vacinação. Eles observaram taxas de mortalidade semelhantes às nacionais, com pico de excesso de mortalidade atingido em novembro de 2020.

Outro estudo publicado em junho de 2023 por uma parte desses mesmos pesquisadores considerou o excesso de mortalidade nessas comunidades em 2020 e 2021. Eles concluíram que, desde o início da campanha de vacinação, o excesso de mortalidade diminuiu na população norte-americana em geral, na qual dois terços estavam vacinados contra a covid-19. Mas nas comunidades Amish e menonitas, onde muito poucas pessoas foram vacinadas, o excesso de mortalidade permaneceu alto.

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Uma carruagem Amish na área de Lancaster, na Pensilvânia, Estados Unidos, em 7 de novembro de 2022 ( AFP / Branden Eastwood)

Além disso, é difícil avaliar até que ponto as comunidades Amish seguiram ou não as restrições sanitárias anticovid, de acordo com Steven Nolt. Algumas comunidades são “muito sectárias” enquanto outras estão mais “integradas” ao restante do mundo, e as medidas implementadas também puderam evoluir de acordo com o tempo e com a presença, ou ausência, de covid-19 nas populações, comentou.

“Muitas comunidades Amish impuseram ordens para que as pessoas ficassem em casa, para fechar escolas e igrejas por alguns meses, mas depois pararam de aplicá-las, da mesma forma que seus vizinhos rurais não-Amish”, acrescentou, citando como exemplo o mercado municipal de uma comunidade Amish que exigia que todos os vendedores usassem máscaras, sem as quais não podiam manter suas barracas.

Contudo, “acredito que de maneira geral, mas com algumas exceções, podemos afirmar que em meados de junho de 2020, a maior parte dos Amish não seguiram, ou seguiram muito pouco, as diretrizes sanitárias, a menos quando eram obrigatórias”, avançou o pesquisador.

Os Amish são “de forma geral reticentes com relação ao uso de máscaras e a praticar distanciamento social”, agregou Braxton Mitchell.

"Na verdade, estávamos nos perguntando qual foi o impacto da pandemia na comunidade Amish e, durante o verão de 2020, tentamos listar as mortes. Vimos um aumento de três ou quatro vezes no número de mortes na comunidade durante o verão, em comparação com o número de óbitos mensais do ano anterior”, detalhou.

“Com base nessa e em nossas outras observações, não vejo nenhuma base para as alegações de que os Amish foram menos afetados pela mortalidade gerada pela covid-19 do que aqueles que não são Amish”, concluiu.

Vacinas são recomendadas mesmo após infecção

As autoridades sanitárias de diversos países seguem recomendando a vacinação, mesmo após uma infecção por covid-19.

Nos Estados Unidos, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e a instituição de pesquisa Mayo Clinic recomendam a vacinação aos que já foram infectados.

No Brasil, em uma nota publicada em abril de 2023, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reforçou que a vacinação contra a covid-19 “continua sendo a forma mais eficaz de reduzir mortes e doenças graves pela infecção”.

Referências

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