Artigo viral não prova que vacinas contra a covid-19 mataram "de 5 a 12 milhões" ao redor do mundo

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  • Publicado em 5 de setembro de 2022 às 20:58
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  • Por AFP Brasil
As vacinas contra a covid-19 não mataram “de 5 a 12 milhões de pessoas em todo o mundo”, ao contrário do que afirma um texto baseado em supostos estudos científicos, compartilhado nas redes sociais dezenas de vezes desde 18 de agosto de 2022. Dados dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos e do Ministério da Saúde brasileiro não corroboram esses números, e os estudos mencionados não possuem respaldo da comunidade científica.

“As injeções de Covid mataram de 5 a 12 milhões de pessoas em todo o mundo, aproximadamente!”, diz uma das usuárias que compartilha no Twitter o link para um texto publicado no site do Jornal Tribuna Nacional (1, 2). O conteúdo também circula no Facebook.

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Captura de tela feita de 30 de agosto de 2022 de uma publicação no Twitter ( . / )

O texto compartilhado em português foi publicado originalmente em uma newsletter de autoria de Steve Kirsch, que se apresenta como fundador da Vaccine Safety Research Foundation. Nele, o autor afirma que “em uma estimativa conservadora” as vacinas contra o SARS-CoV-2 teriam matado “5 milhões” de pessoas, mas o “cálculo aproximado”, continua o texto, é de “12 milhões” de óbitos em todo o mundo. Só nos Estados Unidos, prossegue, a imunização teria causado “600 mil” mortes.

Para chegar a esses números, o autor do artigo primeiro dividiu o número de doses aplicadas globalmente - 12,6 bilhões - por 1000, chegando a 12 milhões de mortes. Ainda de acordo com ele, em “uma expectativa mais conservadora”, o número de doses poderia ser dividido por 2.500, o que faria chegar à cifra de 5 milhões de mortes.

Para suas projeções, o autor cita artigos (1, 2) de 2021 e 2022 publicados na Substack, plataforma online que permite que usuários enviem newsletters por assinatura. Uma pesquisa pelo título das publicações no site PubMed, que reúne as principais pesquisas científicas do mundo, não levou a nenhum resultado.

Sem respaldo da comunidade científica

Sobre os supostos estudos divulgados pelos conteúdos virais, o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, Alexandre Naime, esclarece que tais publicações não podem ser consideradas estudos científicos, já que os dados apresentados são de blogs e não passam de opinião dos autores.

Naime explica que, para ser considerada científica, uma publicação deve ser revista por pares e ter uma avaliação de metodologia clara e de acurácia. Para o professor da Unesp, porém, o erro mais trivial dos supostos estudos é que eles não fazem nenhum tipo de relação de causa e efeito. “Analisam apenas uma causalidade. Esse erro é um tipo 1 que a gente diz, um erro óbvio, que você não avalia uma relação de causa e efeito que é essencial.”

O professor da Unesp ainda explica como é realizada uma avaliação de fato após um óbito pós-vacinal: “Todas as mortes pós-evento vacinal, principalmente nos 15 ou até 30 dias, são avaliadas. Cada país tem um comitê para avaliar isso. Aqui no Brasil, a gente chama de EAPV (Evento Adverso Pós-Vacinal). Por exemplo, o indivíduo toma uma vacina hoje e logo depois ele tem um infarto, aí você vai avaliar se esse paciente já não tinha predisposição, se ele já não tinha tido infarto antes, uma série de situações”, detalha.

“Em alguns casos, você tem a formação de trombos, você pode ter AVC, principalmente com as vacinas de base adenovírus, como são as da Oxford e da Johnson. Mas tudo isso passa por uma avaliação justamente para se estabelecer a relação de causa-efeito. Se você não tem essa relação de causa e efeito, e uma investigação individual de cada óbito , isso fica de forma casual.”

A relação estabelecida pelos artigos virais é a mesma entre “se vacinar e, dois dias depois, encontrar o amor da sua vida”, completa Naime.

Flávio Fonseca, virologista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), concorda com Naime quanto à credibilidade dos supostos estudos em que se baseia o texto viralizado. De acordo com ele, a técnica utilizada pelos autores, de dividir o número de doses aplicadas no mundo por 1.000 ou 2.500, para chegar a um número de óbitos por conta das vacinas anticovid, não pode ser considerada válida cientificamente.

“Ele não usa nenhum parâmetro científico comprovado. Eu não sei de onde ele tirou esses números, porque não é referenciado. Então, se ele não faz nenhuma referência, não faz nenhum estudo que seja independentemente verificável, comprovável e avaliado por pares, ele parte de uma premissa irreal, o que nos leva a supor que ele tenha uma agenda política, e não uma agenda científica séria”.

Fonseca recorda que, como todo medicamento, a vacina pode causar efeitos adversos: “Pode causar efeitos adversos em uma parcela muito pequena da população. Pode haver sim complicações mais severas e pode haver óbitos. Não há como se livrar de efeitos adversos em qualquer medicamento como o paracetamol e a aspirina, pois você está lidando com a fisiologia do ser humano e nem todos respondem de maneira igual”.

Estados Unidos

Segundo a publicação viral, 600 mil mortes foram causadas pela imunização contra a covid-19 nos Estados Unidos. Mas na verdade essa cifra não chega a uma dezena, de acordo com estudos conduzidos por entidades sanitárias do país.

Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) informam que, entre 14 de dezembro de 2020 e 24 de agosto de 2022, foram administradas mais de 608 milhões de doses de vacinas contra a covid-19 no país.

De acordo com o órgão, nesse período o Sistema de Comunicação de Eventos Adversos de Vacinas (Vaers, em sua sigla em inglês) recebeu 16.144 comunicados preliminares de mortes entre pessoas que receberam a imunização. A cifra representa 0,027% do total de doses aplicadas nos Estados Unidos.

Dessas mais de 16.000 mortes, o CDC informa que apenas nove estiveram associadas com a vacina da Janssen, números bem distantes dos 600 mil alegados pelo texto viral.

“O CDC e a FDA continuam revisando os relatórios de morte após a vacinação contra o COVID-19 e atualizando as informações assim que estiverem disponíveis”, publicou a entidade em 30 de agosto de 2022.

Brasil

Em relação ao Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) enviou ao AFP Checamos dados próximos aos encontrados pelo CDC em seus estudos. A agência reguladora informou que “a documentação de todos os efeitos adversos supostamente atribuíveis à vacinação estão no Boletim Epidemiológico Especial do Ministério da Saúde.

De acordo com esse documento, foram identificados 16 óbitos com relação causal confirmada, o que corresponde a 1 caso a cada 20 milhões de doses aplicadas no Brasil. A Anvisa ainda esclareceu que todos os casos de morte relacionados foram em decorrência de trombose com trombocitopenia, “uma síndrome extremamente rara com provável relação causal com as vacinas de vetor viral”.

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Captura de tela da página 101 do Boletim Epidemiológico Especial: Covid-19 do Ministério da Saúde ( . / )

A Anvisa reitera que: “De acordo com todo o monitoramento feito sobre as vacinas para Covid e a análise sobre os eventos notificados, os benefícios da vacina superam os riscos”.

Mundo

A publicação viral ainda alega que em todo o mundo a imunização anticovid causou entre 5 e 12 milhões de mortes.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) disse ao AFP Checamos, contudo, que não possui números globais acerca de óbitos ocasionados após a vacinação contra a covid-19.

A entidade afirmou que mais de 12 bilhões de vacinas contra a doença foram administradas em todo mundo até o momento e que, “colocado nesse contexto, os relatos de suspeita de efeitos colaterais ou eventos adversos das vacinas COVID-19 não são mais do que o volume usual relatado para outras vacinas – se houver, há menos eventos em geral, considerando o volume de uso”.

A OMS ainda recordou que “as vacinas COVID-19 mostraram de maneira consistente benefícios positivos na prevenção de mortes e na redução de hospitalizações devido a infecções por COVID-19”. E acrescentou: “As vacinas COVID-19 estão sendo continuamente avaliadas por seus benefícios versus riscos. A observação consistente até agora, em todos os países, foi que os benefícios das vacinas superam em muito os riscos”.

O Checamos já verificou outras peças de desinformação sobre a vacinação contra a covid-19 (1, 2).

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