Estudo de Cambridge não prova que 25% das pessoas vacinadas contra a covid desenvolvem aids

Apesar da sua eficácia comprovada contra formas graves da covid-19, a vacinação é alvo frequente de informações falsas. Desde 11 de dezembro de 2023, publicações com mais de mil visualizações, afirmam que um estudo da Universidade de Cambridge concluiu que “25% das pessoas imunizadas” desenvolveram aids, doença causada pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV). Mas, não foi estabelecida nenhuma ligação entre a doença e a vacinação anticovid. O estudo de Cambridge citado é falsamente interpretado, lamentaram os seus autores à AFP.

“Cientistas de Cambridge admitem que 25% das pessoas vacinadas agora têm AIDS”, diz a legenda de publicações no Facebook, no Kwai, no Telegram e no X.

O conteúdo também circula em inglês, francês, chinês, japonês e árabe.

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Captura de tela feita em 10 de janeiro de 2024 de uma publicação no Facebook (.)

O conteúdo é compartilhado junto a um texto publicado em 10 de dezembro de 2023 no site Tribuna Nacional, que já divulgou outras alegações verificadas pela AFP anteriormente (1, 2). O site está fora do ar após a Justiça determinar a remoção de conteúdos com falsas associações entre a vacina contra a covid-19 e a aids.

“Cientistas investigadores da mundialmente famosa Universidade de Cambridge, no Reino Unido, admitiram que uma em cada quatro pessoas vacinadas desenvolveu agora uma resposta de imunodeficiência crônica, também conhecida como síndrome da imunodeficiência adquirida pela vacina (VAIDS)”, diz um trecho do texto publicado no site.

Especialistas ouvidos pela AFP explicaram que a “síndrome de imunodeficiência adquirida durante a vacinação”, também chamada de “VAID” no conteúdo viral, não existe.

“Não existe ‘VAID’”, refutou Rachel Roper, professora de microbiologia e imunologia da Universidade da Carolina Leste, nos Estados Unidos, entrevistada em outubro de 2023. “Todos os dados do mundo mostram que as vacinas contra a covid salvam vidas e evitam o aumento de mortes”, ponderou.

O professor da Faculdade de Medicina Texas A&M, Jason McKnight, também rejeitou esta correlação.“Não existe Síndrome de Imunodeficiência Adquirida por Vacina ou VAID”, afirmou em dezembro de 2021.

“A alegação de que a diminuição dos níveis de anticorpos ao longo dos meses prova a existência da ‘VAID’ é falsa; é simplesmente um fenômeno natural do sistema imunológico que observamos”, disse McKnight.

Afirmar que as vacinas contra a covid-19 podem degradar o sistema imunológico é uma retórica recorrente difundida pela comunidade antivacina. No entanto, esta alegação não se baseia em nenhuma evidência científica e “não faz sentido”, já explicaram em inúmeras ocasiões especialistas entrevistados pela AFP.

Pelo contrário, os imunizantes anticovid estimulam o sistema imunológico a induzir proteção contra o vírus causador da doença, mesmo que utilizem técnicas diferentes como, por exemplo, RNA mensageiro ou vacinas de vetor viral.

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“As vacinas não têm impacto sobre a imunidade natural”, já explicava, em 2021, o professor de imunopatologia Michel Moutschen. Isso porque os imunizantes contam com o sistema imunológico para complementar a imunidade inata com a imunidade adquirida, conforme explicado por autoridades sanitárias.

Por essa razão, "não há como a vacinação enfraquecer o sistema imunológico", afirmou o imunologista Srđa Janković, e menos ainda que o "destrua" a longo prazo, acrescentou Maja Stanojevic, virologista do Instituto de Microbiologia e Imunologia de Belgrado e consultora da Organização Mundial da Saúde (OMS) à AFP.

Contatado pela AFP em 3 de outubro de 2023, o professor Jeffrey Cirillo insistiu: “É evidente que a vacinação salva vidas”, destacando que “a taxa de mortalidade das pessoas vacinadas foi e continua a ser inferior a 0,1%, o que é muito melhor do que a da população não vacinada que apresenta uma taxa de mortalidade de cerca de 3% devido à infecção pelo SARS-CoV-2" .

Conclusões “ inventadas”

O estudo britânico mencionado nas publicações virais como evidência é intitulado de "N1-methylpseudouridylation of mRNA causes +1 ribosomal frameshifting".  A pesquisa, no entanto, não prova que a vacinação causa imunodeficiência.

Os seus autores, provenientes de várias universidades britânicas, como Cambridge e Liverpool, explicaram à AFP que as conclusões viralizadas foram “simplesmente inventadas”.

O estudo, que examinou os efeitos da vacina de RNA mensageiro da Pfizer em 21 pessoas, observou que um terço dos participantes produziu posteriormente o que chamaram de “proteínas não intencionais” e, portanto, respostas imunitárias a estas proteínas.

No entanto, o principal autor do estudo, James Thaventhiran, imunologista da Universidade de Cambridge, declarou à AFP em 20 de dezembro de 2023 que “os humanos encontram regularmente proteínas involuntárias e geram respostas imunológicas inofensivas”.

“No caso das vacinas contra a covid, as nossas células produzem a proteína spike e o nosso sistema imunológico produz anticorpos contra ela, protegendo-nos de doenças graves. Fábricas de microproteínas chamadas de ribossomos leem as instruções do mRNA para produzir proteínas. Elas leem o código de três letras químicas de cada vez. Cada trio codifica um aminoácido – um único bloco de construção de uma proteína. O ribossomo avança para as próximas três letras e identifica qual aminoácido será o próximo a ser adicionado à proteína em crescimento. Isso se repete até chegar ao final das instruções do mRNA”, detalhou em um artigo publicado no The Conversation.

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Pesquisadores da empresa alemã BioNTech fazem testes para a fabricação da vacina contra a covid-19 de RNA mensageiro (mRNA), em 27 de março de 2021 (Thomas Lohnes/AFP)

“Então de onde vêm as ‘proteínas não intencionais’? Elas são criadas da mesma maneira, mas podem ocorrer erros [...] O ribossomo pode [cometer um erro ao ler as letras] resultando na produção de uma proteína diferente”, continuou o pesquisador no mesmo artigo.

Mas, “é importante notar que os humanos encontram regularmente proteínas involuntárias e geram respostas imunizantes inofensivas, como visto com proteínas produzidas a partir da nossa alimentação ou por bactérias intestinais inofensivas. Essas respostas imunológicas, que ocorrem constantemente em todos nós, são controladas pelo nosso sistema imunológico para evitar que causem danos ao nosso organismo”, lembra.

“Nosso último estudo não questiona a avaliação de segurança das vacinas de mRNA da covid existentes”, disse ele à AFP. “Os dados são claros: não há evidências que liguem proteínas involuntárias a respostas imunológicas prejudiciais”.

Lance Turtle, coautor do estudo e pesquisador da Universidade de Liverpool, também disse que a alegação compartilhada nas redes não tem base em fatos. “É simplesmente inventado”, declarou à AFP em 20 de dezembro de 2023.

“Não havia absolutamente nada sobre imunodeficiência em nosso estudo… Não há nada de imunodeficiência nisso, é o sistema imunológico respondendo a uma proteína estranha”, disse Turtle.

A AFP já verificou outras alegações infundadas segundo as quais a vacinação anticovid levaria à destruição do sistema imunológico ou causaria aids.

Referências

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