Um projeto financiado por Bill Gates não visa cortar milhões de hectares de árvores

A empresa Kodama Systems, apoiada por um fundo de investimento do bilionário norte-americano Bill Gates, não tem como objetivo derrubar 70 milhões de acres de árvores (28,3 milhões de hectares) nos Estados Unidos, ao contrário do que afirmam publicações compartilhadas centenas de vezes nas redes sociais desde setembro de 2023. As postagens interpretam erroneamente um artigo da revista Forbes sobre o projeto. Na realidade, a iniciativa visa enterrar árvores mortas que atualmente são descartadas em queimadas controladas pelo governo a fim de reduzir as emissões de carbono.

“Bill Gates e outros investidores estão apostando que a Kodama Systems pode reduzir o dióxido de carbono no ar cortando e enterrando árvores”, diz uma publicação que circula no X (antes Twitter). “A iniciativa prevê o corte de 70 milhões de acres de florestas, principalmente no oeste dos Estados Unidos, durante a próxima década. Depois de cortar as árvores, a Kodama planeja enterrá-las...”, continua a legenda.

O conteúdo também é compartilhado no Facebook e em postagens em inglês e espanhol.

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Captura de tela feita em 27 de novembro de 2023 de uma publicação no X ( .)

Citada nas publicações, a empresa de tecnologia florestal Kodama Systems, com sede na Califórnia, anunciou em um comunicado à imprensa de dezembro de 2022 que havia levantado US$ 6,6 milhões em uma rodada de financiamento coliderada pelo fundo de investimento de Gates, Breakthrough Energy Ventures.

Mas as alegações de que o investimento visa cortar milhões de hectares de árvores são falsas, disse à AFP a Kodama Systems e o escritório privado de Gates.

Projeto governamental

O Serviço Florestal do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em inglês), em parceria com a Kodama, empreendeu um projeto-piloto para tratar e enterrar o excesso de vegetação gerado pelo desbaste florestal, uma técnica comum no manejo de florestas e terras. A ideia é se livrar da madeira seca e eliminar o dióxido de carbono emitido pela vegetação morta.

O USDA explica em seu site que o objetivo do projeto é tratar “resíduos” de madeira, e não cortar árvores vivas. “Testar uma nova abordagem financeira que aproveita o valor de carbono dos resíduos de madeira em vez de queimá-lo a um custo e emissão de carbono, como ocorre com frequência”, descreve.

O número de 70 milhões de acres mencionado nas publicações começou a se espalhar após um artigo sobre o projeto ser publicado pela revista Forbes em 28 de julho. Nele, o correspondente Christopher Helman escreveu:

“Os enormes incêndios florestais na Califórnia em 2020 evidenciaram os riscos para o ar, a propriedade e a vida representados pelas florestas cobertas de vegetação (...). Para ajudar a resolver o problema, o Serviço Florestal dos Estados Unidos pretende desbastar 70 milhões de acres de florestas ocidentais, principalmente na Califórnia, durante a próxima década, extraindo mais de um bilhão de toneladas de biomassa completamente seca”.

O artigo descreve como o projeto Kodama oferece uma possível alternativa para se livrar do excesso de madeira que não é adequada para comercialização e geralmente é destruída por meio de queimada controlada. Contudo, o texto não relaciona diretamente os “70 milhões de acres” ao projeto da Kodama, ou aos investimentos de Gates.

Um representante do escritório privado de Bill Gates confirmou à AFP em 7 de novembro de 2023 que as alegações de desmatamento eram falsas: “A Kodama desenvolveu sistemas de gestão florestal projetados para aumentar a produtividade florestal, evitar incêndios florestais catastróficos e aumentar o sequestro de carbono enterrando árvores mortas para armazenar permanentemente o carbono que elas sequestraram durante sua vida útil”.

O porta-voz da Kodama, James Sedlak, por sua vez, disse à AFP que um de seus investidores é a Breakthrough Energy Ventures, e “não Bill Gates diretamente”.

Em e-mail enviado em 26 de setembro ele acrescentou: “Não estamos cortando árvores com o objetivo de enterrá-las para reduzir as emissões de CO2”.

A empresa se concentra na vegetação morta que é destruída como parte da “Estratégia de crise de incêndios florestais” do Serviço Florestal do USDA.

O USDA informou em um relatório de janeiro de 2022 que, em dez anos, trataria até 20 milhões de acres (cerca de oito milhões de hectares) em terras do Sistema Florestal Nacional e 30 milhões em outras terras federais, estaduais, tribais e privadas para reduzir o risco de incêndios florestais.

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Bombeiros monitoram uma queimada prescrita no Wilder Ranch State Park, na Califórnia, em 13 de outubro de 2023 ( AFP / Nic Coury)

Scott Owen, assessor de imprensa nacional do Serviço Florestal do USDA, disse à AFP em um e-mail de 5 de outubro de 2023 que essas técnicas podem limitar os riscos de incêndios florestais ao remover materiais “perigosos”.

“Esses tratamentos reduzem as florestas superlotadas para diminuir a ameaça de incêndios florestais para as comunidades”, reiterou, acrescentando que isso permite a remoção de “biomassa lenhosa das florestas que não pode ser vendida ou removida com segurança por meio de queimadas prescritas”.

De acordo com o assessor de imprensa, o Serviço Florestal está apoiando a pesquisa jurídica e financeira associada a esse projeto “para determinar se esse projeto-piloto limitado pode ser replicado em outras áreas geográficas”. Mas “o projeto-piloto abrange um total de 538 acres [217 hectares] da Floresta Nacional de Inyo, portanto é muito pequeno”, continuou.

Abóbadas de madeira

As plantas desempenham um papel importante no ciclo do carbono. Quando uma árvore cresce, ela remove e armazena grandes quantidades de dióxido de carbono da atmosfera por meio da fotossíntese.

O oxigênio gerado pela fotossíntese de uma árvore tem mais impacto do que o CO2 liberado na atmosfera pelo seu processo de respiração. Entretanto, quando ela morre, continua liberando carbono por meio da decomposição, enquanto a fotossíntese é interrompida.

De acordo com Ning Zeng, professor do Departamento de Assuntos Atmosféricos e Oceânicos da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, as abóbadas subterrâneas de madeira, que proporcionam ambientes selados e privados de oxigênio, poderiam ser uma alternativa promissora para o descarte do excesso de madeira morta nas florestas norte-americanas que são cortadas intencionalmente.

“Os resíduos de madeira gerados podem ser enterrados para evitar a decomposição. Portanto, enterrar essas partes queimadas tem o duplo benefício de reduzir o risco de incêndio direto e reduzir as emissões de CO2”, disse o professor à AFP em um e-mail de 23 de setembro de 2023.

O método, segundo Zeng, “tem grande potencial para criar um reservatório líquido de carbono, desde que as florestas sejam manejadas de forma sustentável e a biomassa lenhosa residual seja usada”.

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( AFP)

Bill Gates e o plantio de árvores

Gates provocou uma nova polêmica no início de 2023, quando afirmou em uma conferência sobre o clima, organizada pelo jornal The New York Times, que não via o plantio de árvores em larga escala como uma solução para as mudanças climáticas.

“Eu não uso alguns dos métodos menos comprovados”, disse Gates, especificando: “Eu não planto árvores”.

Até novembro de 2023, a Breakthrough Energy Ventures havia adquirido participações em 100 empresas iniciantes de tecnologia limpa em todos os setores climáticos, incluindo uma com sede em Chicago que comercializa caminhões movidos a etanol e uma empresa australiana que produz suplementos alimentares para reduzir as emissões de metano no gado.

A AFP já verificou anteriormente alegações falsas relacionadas a Bill Gates.

Referências

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