Uma enfermeira administra a dose de reforço da Pfizer em um local de vacinação e teste de covid-19 no Ted Watkins Park, em Los Angeles, em 5 de maio de 2022 ( AFP / Frederic J. Brown)

''Died Suddenly" usa alegações falsas para dizer que vacina anticovid é arma de despovoamento

As autoridades de saúde pública dizem que as vacinas contra a covid-19 são muito eficazes na prevenção de doenças graves e mortes, mas um vídeo assistido mais de 10 milhões de vezes afirma que elas fazem parte de uma conspiração de despovoamento. Especialistas assinalaram que o filme, com uma hora de duração, é uma peça de "desinformação", apontando alegações falsas, dados que mostram milhões de vidas salvas durante a pandemia devido à vacinação e a falta de evidências que sustentem as premissas do filme.

"Died Suddenly" foi lançado em 21 de novembro de 2022 na plataforma Rumble. O filme foi divulgado com legenda em português em 23 de novembro e, em algumas publicações, ganhou o título “Morte súbita” ou “Morreu de repente”.

"Durante séculos, a elite global transmitiu suas intenções de despovoar o mundo - até o ponto de esculpi-los em pedra. E, no entanto... parece que nunca acreditamos neles. A Stew Peters Network tem o orgulho de apresentar DIED SUDDENLY", diz a descrição do filme.

Peters, um apresentador de talk show norte-americano difunde regularmente teorias da conspiração e falsas alegações sobre o coronavírus e as vacinas em seu programa "The Stew Peters Show".

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Captura de tela feita em 1º de dezembro de 2022 do filme "Died Suddenly" no Rumble ( .)

"Died Suddenly" se espalhou rapidamente pela internet por meio de postagens no Facebook (1, 2), Twitter, Instagram, e Telegram. O filme também foi promovido em sites de compartilhamento de vídeo como o BitChute.

“Stew Peters Network EXCLUSIVA: apresentam a verdade sobre o maior genocídio em massa em andamento na história da humanidade”, diz uma das publicações com mais de 1.200 compartilhamentos.

O filme termina com uma médica do Exército, Theresa M. Long, falando sobre as vacinas contra a covid-19: “É minha opinião médica profissional que esta é uma arma biológica e que foi uma arma biológica lançada contra a humanidade com a intenção de despovoar e controlar a população do mundo".

Mas vários especialistas explicaram que as alegações feitas em "Died Suddenly" – muitas das quais a AFP já desmentiu – são falsas.

"Um nome melhor para o mais recente documentário antivacina, Morte Súbita, seria Mentira Súbita, porque são mentiras por todos os lados", disse Susan Oliver, cientista com doutorado em Nanomedicina, em um tuíte de 27 de novembro.

Excesso de mortes

"Died Suddenly" visa vincular o excesso de mortes visto em diversos países durante a pandemia às vacinas contra a covid-19.

"Se o objetivo era reduzir a população mundial, está funcionando", diz no filme Peter McCullough, um cardiologista cujas credenciais estão sendo revisadas pelo Conselho Americano de Medicina Interna.

Mas pesquisadores dizem que os dados apontam para a covid-19, que, de acordo com autoridades globais de saúde, resultou em 6,6 milhões de mortes até agora, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Chamando o filme de "desinformação", a epidemiologista Katrine Wallace apontou no Twitter que as vacinas contra a covid-19 salvaram milhões de vidas. Wallace usou dados do Registro de Parada Cardíaca para Aumentar a Sobrevivência (CARES) para mostrar como a parada cardíaca súbita nos Estados Unidos era mais comum em 2020 – o auge da pandemia e antes da disponibilidade de vacinas.

De fato, houve um aumento no excesso de mortalidade no mundo – a diferença entre os números de mortes observadas e esperadas em períodos específicos – desde 2020. Mas especialistas dizem que não há evidências de que as vacinas sejam as culpadas.

Frank Yanfeng Han, especialista em cardiologia pediátrica na Northwestern Medicine em Chicago, citou um estudo que compara a Suécia e a Noruega. Ele encontrou maior excesso de mortes relacionadas a complicações da covid-19 na Suécia, que impôs menos medidas de mitigação da pandemia.

Han disse à AFP em 23 de novembro de 2022 que, no Reino Unido, longas esperas por ambulâncias e cuidados cardíacos urgentes também contribuíram para o excesso de mortes.

“A covid é um agente muito, muito ruim, e mesmo que o público não goste muito da imunização, ainda assim deve ser feito um esforço para mitigar a disseminação da covid porque ela pode afetar todos os órgãos do corpo, mesmo em pacientes com covid leve”, disse Han

Em artigo publicado em maio de 2022, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) deu explicação semelhante para o cenário global de excesso de mortes durante a pandemia:

“O excesso de mortalidade inclui mortes associadas diretamente à covid-19 (devido à doença) ou indiretamente (devido ao impacto da pandemia nos sistemas de saúde e na sociedade). As mortes ligadas indiretamente à doença são atribuíveis a outras condições de saúde para as quais as pessoas não tiveram acesso à prevenção e tratamento porque os sistemas de saúde foram sobrecarregados pela pandemia”, diz o texto.

Mortes súbitas

O filme também tenta vincular casos de mortes súbitas à vacina contra a covid-19, mas não fornece evidências de que os óbitos tenham sido causados pela imunização.

"Alguém mencionou, vá ao Google e digite 'morreu repentinamente' e encontre os artigos de notícias que aparecem", diz Chad Whisnant, agente funerário no estado norte-americano do Alabama, no filme.

A alegação é seguida por uma montagem de resultados de notícias, a maioria dos quais não menciona a vacinação contra a covid-19. Uma manchete é sobre um jovem que morreu em um acidente de carro, outra é sobre o fim da plataforma de jogos em nuvem da Google, Stadia.

Um artigo fala sobre um menino de 13 anos de Michigan que morreu alguns dias depois de receber a segunda dose da vacina Pfizer-BioNTech. Os meios de comunicação locais informaram que uma necropsia forense e médica não encontrou relação causal com a vacina.

Quando Whisnant menciona as mortes inesperadas de celebridades, imagens do jogador de beisebol Hank Aaron recebendo sua vacina contra a covid-19 são mostradas na tela. Um médico legista e a Escola de Medicina de Morehouse, onde Aaron foi vacinado, contaram à AFP em 2021 que sua morte não estava relacionada à imunização.

A AFP já verificou que as vacinas contra a covid-19 não estão ligadas às síndromes de morte súbita arrítmica, que incluem uma variedade de distúrbios de arritmia cardíaca que, geralmente, são genéticos.

Coágulos incomuns

“Died Suddenly” mostra depoimentos de embalsamadores e agentes funerários que descrevem a descoberta de coágulos incomuns em corpos.

Um dos entrevistados do filme é Richard Hirschman, um embalsamador licenciado no Alabama que disse à AFP em uma mensagem no Facebook em setembro de 2022 que "não é médico ou cientista".

O filme também apresenta John O'Looney, um agente funerário do Reino Unido que já havia espalhado alegações incorretas sobre a pandemia, e Brenton Faithfull, um agente funerário da Nova Zelândia que ligou falsamente as mortes de seus clientes às vacinas contra a covid-19.

Os embalsamadores em "Died Suddenly" conectam a presença de coágulos nos corpos à vacinação. Mas em checagem anterior da AFP, especialistas apontaram outras possibilidades, incluindo obesidade, tabagismo ou uma infecção por covid-19.

Monica Torres, da empresa de serviços funerários NXT Generation Mortuary Support do estado norte-americano do Arizona, atribuiu os coágulos sanguíneos à refrigeração.

"É que havia tantos corpos para processar, muitos deles ficaram em refrigeração por longos períodos, então eles tiveram coágulos sanguíneos. Não é grande coisa e essas pessoas estão tentando fazer disso um problema", disse por e-mail em 19 de setembro de 2022.

Muitas vezes é impossível dizer o que causou um coágulo de sangue apenas olhando para ele, indicou David Dorward, patologista consultor e professor clínico sênior da Universidade de Edimburgo.

“Um coágulo sanguíneo de um paciente que teve coágulos causados pela infecção por covid quando comparado a coágulos sanguíneos formados após repouso prolongado na cama depois de uma grande operação pareceria praticamente idêntico”, disse em um e-mail de 22 de setembro de 2022.

Eric Burnett, médico do Centro Médico Irving da Universidade de Columbia, explicou em sua conta no Twitter que é comum a formação de coágulos sanguíneos após a morte e apontou as semelhanças entre os coágulos vistos no filme e os coágulos post mortem.

Aos 52 minutos de “Died Suddenly”, um embalsamador diz: "Acredito que a única maneira de um médico ver isso no corpo é se eles realmente entrassem no corpo". Em seguida, o filme mostra imagens do que seria um grande coágulo sendo removido de um coração.

No entanto, o vídeo mostra uma embolia pulmonar sendo removida de um paciente vivo e as imagens foram publicadas no YouTube em 2019 – antes da pandemia.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) disponibiliza as bulas das vacinas contra a covid-19 usadas nos Brasil.

Foram observados casos muito raros (1 em 100.000 indivíduos vacinados) de coágulos sanguíneos em combinação com níveis baixos de plaquetas após a administração da vacina Fiocruz e AstraZeneca. Casos raros de coágulos sanguíneos na veia (1 em 1.000 vacinados) e casos muito raros de coágulos sanguíneos, muitas vezes em locais incomuns em combinação com o baixo nível de plaquetas sanguíneas, foram relatados após a administração do imunizante da Janssen.

Natimortos

“Died Suddenly” também conecta infundadamente as vacinas contra covid-19 a natimortos.

O filme entrevista Michelle Gershon, identificada como uma enfermeira registrada de Fresno, na Califórnia, e James Thorp, um ginecologista da Flórida filiado ao Conselho Mundial de Saúde – um grupo que já havia espalhado desinformação sobre vacinas.

Thorp apresenta uma análise estatística, alegando que aconteceram 83 casos de óbitos fetais em um curto período de tempo em Waterloo, Canadá.

A AFP verificou pela primeira vez as alegações sobre aumentos incomuns de natimortos no Canadá em 2021. As autoridades locais disseram que "não há verdade" na afirmação.

Victoria Male, professora de Imunologia Reprodutiva no Imperial College London, analisou 30 estudos de oito países que se concentram na segurança da vacinação contra a covid-19 durante a gravidez. Não foi encontrado nenhum risco de aumento em morte fetal.

Aos 59 minutos, o filme cita um relatório de estudo da Pfizer fornecido à agência de Medicamentos e Alimentos (FDA) dos Estados Unidos que supostamente mostraria que mais de 80% das grávidas que participaram de um ensaio clínico da farmacêutica teriam perdido o bebê. Mas, como a AFP checou anteriormente, esse número é baseado em um cálculo falso e o documento não menciona perigos das vacinas para mulheres grávidas.

Mais verificações da AFP de alegações sobre vacinas estão disponíveis aqui.

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