A segunda onda da gripe espanhola foi a mais letal, mas não porque as pessoas se despreocuparam
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- Publicado em 8 de julho de 2020 às 18:17
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- Por Sonia GONZALEZ, AFP Espanha, AFP Brasil
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“A pandemia mais grave da história foi a gripe espanhola de 1918. Durou 2 anos, em 3 ondas de contaminação com 500 milhões de pessoas infectadas e totalizando 55 milhões de mortes”, começa o texto, compartilhado mais de 41,8 mil vezes no Facebook (1, 2, 3, 4) ao menos desde o último dia 14 de maio.
E continua: “A maioria das mortes ocorreu durante a segunda onda de contaminação. A população tolerou tão mal as medidas de quarentena e de distanciamento social, que quando ocorreu a primeira saída pública liberada, a população começou a se alegrar nas ruas, abandonando todas as medidas de precauções aprendidas. Nas semanas seguintes, a segunda onda de contaminação chegou com milhões de morte. Portanto, não se empolguem quando for tudo liberado, mantenham calma e continuem tomando muito cuidado. Não vamos querer uma segunda onda de coronavírus”.
Esta mensagem também circulou amplamente no Instagram (1, 2, 3, 4) e, em menor escala, no Twitter.
Captura de tela feita em 7 de julho de 2020 de uma publicação no Instagram
Textos com teorias semelhantes também circularam milhares de vezes em outros idiomas, como espanhol, inglês e francês.
As publicações a respeito da segunda onda da chamada gripe espanhola são acompanhadas por diferentes imagens.
Uma busca reversa no Google Imagens mostrou que a foto de pessoas transportando macas e usando máscaras foi tirada na cidade norte-americana de Saint Louis em outubro de 1918 e mostra membros da Cruz Vermelha em ação, como se pode conferir no site da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.
Outra fotografia, de homens sentados em uma arquibancada e que já foi verificada pelo AFP Checamos no contexto da pandemia de COVID-19, foi registrada durante a mesma epidemia de gripe em 1918, dessa vez no estado norte-americano da Geórgia.
Uma terceira foto, de uma série de leitos enfileirados, foi registrada em 1918 em armazéns que foram adaptados para manter as pessoas infectadas em quarentena, e pode ser encontrada no arquivo do banco de imagens Getty Images.
No Brasil, não houve uma decisão única quanto a reabertura de estabelecimentos comerciais e outros locais que estavam fechados devido à pandemia de COVID-19. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, a Prefeitura anunciou em 1º de junho uma abertura gradual das atividades econômicas. No último dia 3 de julho, por sua vez, o Governo de São Paulo anunciou os protocolos para espaços como restaurantes, academias e salões de beleza.
A onda mais letal
A chamada gripe espanhola provocou ao menos 50 milhões de mortes e infectou cerca de 500 milhões de pessoas em todo o mundo entre 1918 e 1919, como indica o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos.
O novo patógeno começou a se disseminar em acampamentos militares nos Estados Unidos em março e abril de 1918, quando a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) ainda estava em curso. Este contexto explica a chegada do vírus - por meio das tropas - à Europa. Também explica que os países beligerantes, em uma tentativa de manter o moral dos soldados e da população em geral, restringiam a informação sobre esta epidemia, como foi reportado, em espanhol, inclusive evocando uma censura.
Na Espanha, por sua vez, que se declarou neutra no início do conflito internacional, a doença foi noticiada desde maio, quando começaram a registrar casos em Madri. Meios de comunicação de outros países reportavam sobre a gripe limitando-a à Espanha, motivo pelo qual a enfermidade ganhou o nome “gripe espanhola”.
A primeira onda, dada como terminada em julho, teve um impacto heterogêneo no mundo e os casos da doença foram “muito mais leves do que os que foram observados durante as duas ondas seguintes”, lembra o CDC.
A segunda onda também foi detectada em um acampamento militar norte-americano - Camp Devens -, no arredores de Boston, em setembro de 1918 e a ela é atribuída a maior parte das mortes da pandemia.
Este novo surto “apareceu ao mesmo tempo na Europa, na América e na Ásia, e esta foi a verdadeira pandemia de gripe de 1918”, destacou em um e-mail enviado à equipe de checagem da AFP Anton Erkoreka, diretor do Museu Basco de História da Medicina, destacando que este “matou em todo o mundo, no outono [no hemisfério norte], cerca de 40 milhões de pessoas”.
O pico desta onda nos Estados Unidos foi entre setembro e novembro, explica o CDC. O terceiro surto surgiu no começo de 1919 e, “embora tenha sido grave, esta onda não foi tão fatal como a segunda”, de acordo com a mesma fonte.
Duas mulheres de máscaras visitam a Basílica da Sagrada Família, em Barcelona, em 4 de julho de 2020
Despreocupação da população?
Mas a alta letalidade desta segunda onda pode ser explicada pela despreocupação da população? “Isto não faz sentido”, assegurou à AFP John Barry, autor do livro “The Great Influenza: The Story of the Deadliest Pandemic in History”.
Na sua opinião, a principal causa de uma maior mortalidade foi o próprio vírus. “O vírus mudou e se tornou muito mais letal. De fato, a segunda onda foi tão intensa que uma minoria de virologistas acredita que se tratou de dois vírus totalmente diferentes”, explicou por e-mail Barry, que fez parte de diferentes órgãos de consulta das autoridades norte-americanas sobre doenças.
“Provavelmente, alguma das cepas do vírus influenza, responsável pela gripe espanhola, se tornou muito mais forte e seletiva, provocando a hecatombe que ocorreu em todo o hemisfério norte entre setembro e novembro de 1918”, concordou Anton Erkoreka. A essa nova intensidade da influenza seriam acrescidas a “sua capacidade para matar sobretudo jovens-adultos, entre 20 e 35 anos; e, é claro, as condições desumanas nas quais viviam milhões de soldados nos fronts de guerra”, continuou.
O segundo surto da gripe espanhola “não se deveu a um ‘desconfinamento’, pois não houve um confinamento durante a primeira fase”, explicou à AFP Freddy Vinet, professor na Universidade Paul Valéry de Montpellier, na França. Vinet, também autor de uma uma obra sobre esta pandemia do século XX - “La grande grippe. 1918, la pire épidémie du siècle” - explicou:
“Na realidade, as sociedades de 1918 não tinham meios para se ‘confinar’ na forma que nós fizemos”, destacou, dando como exemplo a ausência de refrigeradores e a falta de telecomunicações.
Nesta transmissão de uma rádio pública francesa, Vinet recordou também que em 1918 o contexto bélico obrigava grande parte da população de vários países a trabalhar sem parar. Muitos cidadãos não tinham permissão para descansar “e o principal medicamento [para a gripe], como diziam claramente os médicos naquela época, é o repouso”, até que já era tarde demais, destacou.
“Na primeira onda de 1918 não obrigaram o uso de máscaras, nem impuseram medidas especiais de uma maneira geral. Em muitos países da Europa passou despercebida”, apontou, por sua vez, Erkoreka.
As situações de 1918 “e as atuais não têm nada a ver”, assinalou também José Luis Betrán, professor de História Moderna da Universidade Autônoma de Barcelona (UAB).
“Nem a medicina, nem os sistemas de saúde pública tinham o desenvolvimento atual, nem a população contava com os meios de comunicação que temos hoje em dia para ser informada do que devia fazer e tomar consciência individualmente dos riscos”, afirmou em um e-mail enviado à AFP. Por isso, considera que não se pode acusar a população de ter relaxado.
Betrán também apontou outras circunstâncias que puderam contribuir para a propagação do vírus nesses meses, e das quais falou neste artigo. Na Espanha, por exemplo, o início da segunda onda coincidiu com o retorno à península Ibérica de trabalhadores temporários da colheitas de uva na França, em setembro, e com a dispensa dos soldados que cumpriram o serviço militar. A partir de novembro também ocorreu “o retorno das tropas combatentes durante a Primeira Guerra Mundial aos seus países”, contou.
A isso se somaram “as más condições de higiene de muitas cidades” e “o baixo número de médicos nas zonas rurais, ainda muito povoadas naqueles anos”.
Não obstante, “a situação variou muito entre países e no interior dos países”, explicou Vinet à AFP.
Um exemplo dessas diferenças seria a cidade norte-americana da Filadélfia, que ordenou o fechamento de escolas, igrejas e outros locais públicos em 3 de outubro de 1918, depois que um desfile governamental para promover bônus estatais destinados a financiar a Primeira Guerra Mundial provocou um surto de contágios. Em Saint Louis, ao contrário, o desfile foi cancelado e foram introduzidas medidas para favorecer o distanciamento social.
Medidas de prevenção
Embora entre 1918 e 1920 não tenham sido impostos confinamentos como os vividos em grande parte do planeta em 2020, foram adotadas algumas medidas de prevenção que, segundo alguns estudos, contribuíram para evitar um número maior de mortes.
De acordo com uma análise publicada este ano pelo Loyola University Medical Center, nos Estados Unidos, as cidades que adotaram medidas de prevenção precoce, como o fechamento de escolas e igrejas, a proibição de grandes concentrações e o isolamento de doentes, registraram menores taxas de infecção e mortalidade do que as cidades que estabeleceram menos restrições, ou o fizeram mais tarde.
Pesquisadores da Universidade de Princeton compararam em um estudo publicado em 2007 o excesso de mortalidade por gripe e pneumonia em 17 cidades dos Estados Unidos durante o surto de influenza no outono boreal de 1918.
Eles concluíram que a implementação de medidas para evitar o contágio pode reduzir “significativamente” a taxa de transmissão de doença enquanto permanecerem em vigor. Não obstante, o estudo assinala que as evidências destas descobertas são limitadas, pois são baseadas em “observações históricas e contemporâneas, ao invés de estudos controlados”.
Em resumo, embora seja verdade que a segunda onda da gripe de 1918 realmente foi a mais letal, não se pode dizer que foi provocada pelo relaxamento da população.
O AFP Checamos já verificou outras publicações enganosas envolvendo a gripe de 1918-1919 surgidas em meio à pandemia do novo coronavírus.