Frascos da vacina da Moderna contra a covid-19 em Bridgeport, Connecticut, nos Estados Unidos, em 20 de abril de 2021 (Joseph Prezioso / AFP)

Postagens alegam erroneamente que a vacina da Moderna contém um ingrediente inseguro

Publicações viralizadas nas redes sociais desde o último dia 19 de maio indicam que a vacina contra a covid-19 produzida pela empresa de biotecnologia Moderna contém SM-102, alegando que essa substância causa câncer e não é própria para uso humano. Mas o documento usado como “prova” se refere a uma combinação de SM-102 com clorofórmio, elemento tóxico que não é listado como um componente do imunizante.

“Uma pesquisa no Google com a frase: ‘Simples ingredientes da Vacina da Moderna?’ traz rapidamente como primeiro item o SM-102. Ao pesquisar SM-102 no google, no site da Cayman Chemical, é fornecido o Download com os dados de segurança em PDF do SM-102. Nele consta: Suspeito de causar câncer. Suspeito de prejudicar a fertilidade e os nascituros. Causa danos no sistema nervoso central, nos rins, no fígado e no sistema respiratório se prolongado ou exposição repetida”, assinalam as postagens, que circularam no Facebook em forma de texto, foto (1) e vídeo (1).

Conteúdo semelhante também foi encontrado no YouTube, no Twitter (1), em um site e no aplicativo de mensagens Telegram (1), onde foi visualizado mais de 34,6 mil vezes, além de ter viralizado em inglês.

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Captura de tela feita em 26 de maio de 2021 de uma publicação no Facebook

Nas versões em vídeo, que mostram uma tela sendo gravada, é possível ver uma busca sobre o conteúdo das vacinas contra a covid-19. Posteriormente, o usuário clica no site de uma companhia química que fornece detalhes de um produto chamado SM-102, um lipídio usado em combinação com outros lipídios para a formação de nanopartículas.

O SM-102 aparece também na composição da vacina da Moderna. Este elemento ajuda a proteger as frágeis moléculas de RNA mensageiro (mRNA) - a tecnologia de ácido ribonucleico mensageiro utilizada nas doses dos imunizantes - e a entregá-las nas células. 

O que circula?

As sequências publicadas nas redes sociais mostram a primeira página de uma Ficha de Segurança do SM-102, disponível no site da Cayman Chemical, uma empresa de biotecnologia com sede em Ann Arbor, em Michigan, nos Estados Unidos, que especifica que a substância é “apenas para uso em pesquisa”.

Nos vídeos viralizados, as advertências sobre os riscos à saúde apresentadas no documento, como “suspeita de causar câncer” e “suspeita de prejudicar a fertilidade ou o feto”, são usadas para sugerir que o SM-102 e, portanto, a vacina contra a covid-19, são perigosos.

No entanto, de acordo com Marco Antonio Stephano, doutor em Tecnologia Bioquímico-Farmacêutica e professor da Universidade de São Paulo (USP), “pelo SDS (Safety Data Sheet), o SM-102 não tem componente [algum] em concentração igual ou maior que 0,1% identificado como carcinogênico”.

“O SM-102 apresenta como toxicidade apenas efeitos de irritação de pele, olhos e órgão específico, tal como pulmão, se for inalado. [...] Sendo assim, o produto SM-102 é considerado seguro quanto ao seu uso na vacina da Moderna, não sendo responsável por nenhuma patologia descrita” nas postagens viralizadas, assinalou Stephano.

O SM-102 da Cayman Chemical

Efetivamente, a ficha com dados de segurança da Cayman Chemical mostrada no conteúdo viralizado contém as advertências - inclusive sobre riscos de câncer e infertilidade - que são exigidas pelas agências reguladoras. Isso porque o SM-102 da empresa está misturado, como detalhado na segunda página, com clorofórmio, um solvente com potencial cancerígeno e que pode causar a depressão do sistema nervoso central.

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Combinação de capturas de tela feita em 4 de junho de 2021 no site da Cayman Chemical

À equipe de checagem da AFP, a Cayman Chemical indicou que, após a viralização do conteúdo, divulgou um comunicado em 19 de maio de 2021 explicando que o SM-102 está entre os produtos que fabrica “apenas para uso em pesquisa” e estes “são destinados somente para uso in vitro ou animal (exploratório ou pré-clínico)”.

A companhia ainda assinalou que “produtos químicos com o mesmo nome podem ter designações diferentes, [dependendo do] grau ou formulação que são definidos por seus protocolos de fabricação e uso pretendido”.

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Captura de tela feita em 27 de maio de 2021 no site da Cayman Chemical

No comunicado é enfatizado que “nem o National Institute for Occupational Safety and Health (NIOSH), o Registry of Toxic Effects of Chemical Substances (RTECS), nem a European Chemicals Agency (ECHA) Classification and Labelling Inventory listam quaisquer perigos associados ao SM-102”.

O documento visto nas publicações viralizadas foi revisado em 26 de maio de 2021 e teve seu nome comercial alterado para especificar desde o início que se trata de uma mistura do SM-102 com o clorofórmio. No documento inicial esse detalhe aparecia apenas na segunda página, indicando: “Componentes da etiqueta que determinam perigo: Clorofórmio”.

O clorofórmio, encontrado na mistura com SM-102 da Cayman Chemical, é uma substância não listada como ingrediente na vacina da Moderna pelos reguladores norte-americano, europeu e canadense

De acordo com Stephano, é comum haver esse tipo de mistura: “Como o SM-102 é uma formulação lipídica sintética, usa-se solvente orgânico, neste caso o clorofórmio. Mas o clorofórmio não é usado na vacina. O que é usado é o DMSO, muito utilizado como solvente em diversos medicamentos”.

Ainda segundo o professor da USP, por o SM-102 “ser uma formulação lipídica sintética você precisa de um solvente orgânico para solubilizar. No caso da Cayman [Chemical] o solvente foi o clorofórmio. Em outros, você vai encontrar o DMSO”.

No mesmo sentido falou o bioquímico Jean Chaudière: o “SM-102 não é, de modo algum, sistematicamente misturado com clorofórmio”.

Além da produção de vacinas, Stephano indicou que o SM-102 pode ser usado para outros fins, como delivery de fármacos e terapia gênica”.

Contactada pela AFP a respeito da segurança da vacina, a Moderna não respondeu.

A rede de saúde Nebraska Medicine explica em seu site que “quando usado para outros fins além de remédios, o SM-102 às vezes é misturado com clorofórmio. [...] Quando mistura dessa forma, não é considerado o seu consumo pelas pessoas”.

A microbiologista da Universidade de York, no Canadá, Dasantila Golemi-Kotra assinalou que as empresas são obrigadas por lei “a listar todas as substâncias que estão presentes a níveis que podem ser arriscados para os humanos”.

Ela também explicou que “a Ficha de Segurança indica claramente (para alguém que conhece e está disposto a aprender a ler tal documentação) que o SM-102 [da Cayman Chemical] é uma mistura de duas substâncias químicas: o ingrediente ativo, o lipídio, e um solvente, o clorofórmio. O SM-102 não é o lipídio puro, mas constitui 10% da mistura SM-102”.

Golemi-Kotra apontou para uma seção adicional da Ficha de Segurança que indica que enquanto o clorofórmio está listado na parte de “componentes perigosos”, a molécula SM-102 não está.

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Captura de tela feita em 19 de maio de 2021 no site da Cayman Chemical

Outras tabelas de segurança presentes no documento também mostram que o clorofórmio, não o lipídio SM-102, é o ingrediente alvo das advertências.

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Captura de tela feita em 19 de maio de 2021 no site da Cayman Chemical

Raymond Tellier, um microbiologista do Centro de Saúde da Universidade de McGill no Canadá, também confirmou que “uma leitura atenta da Ficha de Dados de Segurança do Material (MSDS) que está linkada mostra claramente que todas as advertências contidas se referem ao clorofórmio”.

O AFP Checamos já verificou vários conteúdos (1, 2, 3) a respeito das vacinas produzidas contra a covid-19.

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