Certificados usados na Alemanha nazista não são comparáveis ao passaporte sanitário da covid-19

A imagem de um documento usado durante o período da Alemanha nazista foi compartilhada mais de 1.400 vezes nas redes sociais, desde ao menos 15 de novembro, com a afirmação de que se trata do Ahnenpass, certificado de ancestralidade, supostamente comparável ao passaporte da vacina contra a covid-19. Mas o documento compartilhado, Gesundheitspass (passe de saúde, em alemão), é diferente do citado no texto, e segundo especialistas explicaram à AFP, nenhum dos dois é comparável àquele usado em alguns países em resposta à pandemia.

“Em 1933, os dirigentes da A.dolf H.itler decidiram introduzir o chamado 'Der Ahnenpass', também conhecido como 'passaporte genealógico'. Este passaporte confirmou que o titular era de origem ariana. Esse passaporte era necessário para obter acesso a museus, prédios públicos, teatros, escolas e locais de trabalho”, dizem publicações compartilhadas no Facebook (1, 2, 3), Instagram (1, 2, 3), Twitter (1, 2, 3) e Telegram.

O texto continua: “A rapidez com que todo mundo esquece, ou talvez nem saiba ... O passado repete-se até a humanidade aprender. Ao longo destes anos o que aprendeu?”

Algumas publicações adicionam ainda a hashtag “#PassaporteSanitárioNão”.

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Captura de tela feita em 7 de dezembro de 2021 de uma publicação no Facebook ( . / )

Conteúdo similar circulou em espanhol.

Uma busca reversa pela imagem viralizada usando as ferramentas Yandex e Bing levou aos bancos de imagem Getty Image, Alamy e Akg Images. Todos informam tratar-se de um passaporte de saúde de Hamburgo, na Alemanha, emitido em agosto de 1936, durante o período do Nacional Socialismo.

Nos três sites, o artigo está à venda, contudo, “apenas para uso jornalístico ou acadêmico”.

Gesundheitpass

O Gesundheitspass, certificado ou passaporte de saúde que ilustra as publicações viralizadas, não foi criado pelos nazistas, lembrou à AFP Luís Edmundo de Souza Moraes, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador de Nacional Socialismo e Holocausto.

“O início da adoção [do certificado de saúde] tem a ver com viagens”, disse Moraes, explicando que “em alguns países, no século XIX, se usava uma carta para isso. A pessoa precisava viajar e vinha de uma área com algum tipo de epidemia, então o governo dava uma carta dizendo que ela estava saudável”.

O doutor em História Emmanuel Kahan, diretor do Núcleo de Estudos Judaicos do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social da Argentina, explicou à AFP que o Gesundheitspass não é comparável ao passaporte sanitário que alguns países implementaram como medida para tentar frear a circulação do vírus SARS-CoV-2, que causa a covid-19. Os passaportes usados na Alemanha nazista “entendiam o sanitário de um modo distinto ao que se usa hoje”, assegurou Kahan.

O passaporte sanitário implementado em 2021 indica se a pessoa tem a vacinação completa contra a covid-19, e em alguns países, como na França, pode apontar se houve infecção pela covid-19 ou se foi feito um teste PCR com resultado negativo. Lá, o documento é obrigatório desde 9 de agosto de 2021 para frequentar determinados públicos e realizar certas atividades. O documento é exigido, por exemplo, para entrar em bares ou restaurantes ou viajar em aviões e trens de longa distância. A medida também foi adotada de diversas formas no Brasil, na Argentina e na Itália.

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Visitantes apresentam o chamado “Green Pass” na entrada do monumento Altare della Patria, na Piazza Venezia, em 5 de dezembro de 2021, em Roma ( AFP / Vincenzo Pinto)

As publicações viralizadas usam uma sobreposição de símbolos para associar o passaporte sanitário a certificados usados no período nazista, apontou Moraes. “A primeira delas é a suástica como símbolo de que é alguma coisa excludente, horrível, e é verdade, só que nesse caso [do Gesundheitspass] é um documento burocrático, como uma certidão de nascimento. Qualquer documento produzido pela Alemanha nazista entre 1933 e 1945 tinha a suástica, qualquer documento. Atestado de óbito tem, certidão de nascimento tem”, explicou.

No caso do Ahnenpass isso é diferente, pois é um “certificado de ascendência, tem a ver com racismo”, acrescentou.

“Os atuais debates sobre ‘passaporte sanitário’ têm lugar em outro contexto: uma pandemia. Nesse sentido, sua utilidade reside em uma crise sanitária global, na qual não se propõe excluir ou tirar direitos de cidadania pelo caráter étnico, religioso, cultural ou nacional de um grupo, mas ao contrário, estabelecer critérios de cuidado e de salvaguarda sobre o conjunto das populações”, destacou Emmanuel Kahan.

O que era o certificado de ancestralidade?

O texto que acompanha a imagem do Gesundheitspass, ou passaporte de saúde, faz referência, na verdade, ao Ahnenpass, ou passaporte de ancestralidade. Este, sim, foi um documento utilizado exclusivamente na Alemanha nazista. “O passaporte [de ancestralidade] foi um artefato exemplar da ambição extraordinária dos nazistas de moldar de novo os alemães em um conjunto racial puro e de segregar os judeus e forçá-los a abandonar o país”, explica Peter Fritzsche no livro “Vida e morte no Terceiro Reich”, em tradução livre do inglês.

“Em 1936, os alemães tinham começado a preparar seu passaporte racial (Ahnenpass), que se comprava em uma papelaria, mas um tabelião tinha que certificar os nascimentos, matrimônios e mortes dos avôs, pais e filhos, a fim de provar a identidade ariana na qual se fundava a cidadania”, indica Fritzsche.

“O Ahnenpass, algo como certificado de ancestralidade ou certificado genealógico - literalmente: passaporte genealógico -, foi um documento criado durante o III Reich a partir de iniciativas anteriores de produzir ‘Cadernetas Genealógicas’ onde eram registrados os ancestrais do portador. Então servia como um instrumento de segregação daqueles que não eram considerados puros, ou daqueles que eram chamados de ‘misturados’, e daqueles que eram considerados racialmente inferiores”, explicou à AFP Luís Edmundo de Souza Moraes.

“A grande maioria dos alemães providenciou provas ancestrais ou tinha um Ahnenpass ou Ariernachweis, o passaporte racial que voltou a ser cada vez mais indispensável para a Alemanha nazista ganhar vida”, aponta Fritzsche nesta análise de “The Nazi Ancestral Proof: Genealogy, Racial Science, and the Final Solution”, obra do historiador Eric Ehrenreich, da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos.

“Essas disposições foram sustentadas pelas Leis de Nuremberg, sancionadas em 1935, que foram acompanhadas por diversas medidas restritivas durante todo o período do regime nacional socialista, até 1945. Essas regulamentações incluíam a impossibilidade de acesso a certos empregos, a obrigação de se desfazer de imóveis e de bens móveis, a proibição de estudar ou de circular em determinados espaços, etc.”, disse o historiador Emmanuel Kahan.

Michel Gherman, historiador e coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes (NIEJ) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explicou por que considera que o Ahnenpass e os atuais passaportes sanitários não são comparáveis:

“O objetivo final da Alemanha nazista, acho que esse é o ponto, é exterminar grupos, e não salvar grupos. Isso tem uma dimensão de negacionismo do Holocausto. Estamos falando de morte, de genocídio, de extermínio, não estamos falando de proteção dos outros, então não tem comparação”.

Gherman ainda advertiu: “É preciso tomar muito cuidado porque ao entrar nesse debate, você entra em um ponto de relativização do nazismo”.

A nível global, alguns grupos que se opõem à vacinação contra a covid-19 compararam em diversas oportunidade as políticas sanitárias para conter a pandemia com planos de genocídio ou extermínio da população. Várias dessas afirmações já foram verificadas pela AFP (1, 2, 3).

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