Especialistas desaconselham o uso de respiradores caseiros para pacientes com covid-19

  • Este artigo tem mais de um ano
  • Publicado em 3 de fevereiro de 2021 às 20:49
  • 6 minutos de leitura
  • Por AFP México, AFP Brasil
Vídeos que mostram dispositivos artesanais que supostamente melhoram a oxigenação de pacientes com covid-19 foram visualizados mais de 353,9 mil vezes nas redes sociais desde o último dia 15 de janeiro, quando o Brasil enfrentava uma piora na crise de saúde com a falta de oxigênio no Amazonas. Mas especialistas e autoridades advertem contra o uso desses artefatos por sua ineficácia e potencial risco.

 

As gravações circulam no formato de um tutorial de como fazer esse “respirador caseiro”. Em uma delas, compartilhada mais de 12 mil vezes no Facebook e no YouTube, o homem conta que devido à grave segunda onda da pandemia vivida no Amazonas, teve que fazer um “cilindro de oxigênio caseiro” e que “se você tiver inalador em casa, é muito fácil de fazer”.

Em outro vídeo, viralizado no Facebook (1, 2), no Twitter (1) e no YouTube, um indivíduo indica que após a fornecedora de gases White Martins ter avisado que faltaria oxigênio no estado, precisou inventar uma solução. “No que consiste esse respirador caseiro: é um inalador, aquela borrachinha que vem do inalador você bota direto na água. Aqui em cima, você pega outra borrachinha, deixa na tampa, que vem pro nariz. Essa borracha que joga na água, quando subir aqui, vai subir oxigênio puro, ou seja, oxigênio limpo que vai auxiliar as pessoas que estão com problemas respiratórios. Essa não é a solução pro balão de oxigênio, mas é um ‘quebra-galho’”, assinala.

Image

Combinação de capturas de tela feita em 3 de fevereiro de 2021 de publicações no Facebook e Instagram
 

Versões similares desse dispositivo também foram encontradas em sequências publicadas no Instagram (1) e em diversas postagens em espanhol (1, 2), viralizadas principalmente no México, cuja capital registrou níveis de ocupação de hospitais superiores a 90% devido à pandemia.

Os vídeos em português circulam em sua maioria entre usuários e páginas localizados na região norte do Brasil, ou especificamente no Amazonas, que em meados de janeiro viu as reservas de oxigênio dos hospitais acabarem e seus pacientes infectados pela covid-19 terem que ser transferidos para outros estados.

Image

Os parentes de pessoas infectadas com a covid-19 fazem fila para encher os cilindros de oxigênio em Manaus, em 19 de janeiro de 2021 (Marcio James / AFP) 

Especialistas consultados pela AFP consideram que pela complexidade no funcionamento de um concentrador de oxigênio, ou de um cilindro, não é possível a sua fabricação doméstica. Além disso, advertem que os mecanismos mostrados nas redes sociais não têm o rendimento necessário para um paciente com baixos níveis de oxigênio no sangue, podendo gerar uma falsa sensação de segurança.

Concentrador de oxigênio

Um concentrador de oxigênio é um dispositivo médico “elaborado para concentrar o oxigênio a partir do ar ambiente” e fornecê-lo ao paciente, de acordo com as especificações técnicas publicadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2015.

O dispositivo separa o oxigênio através de filtros de zeólito, “mineral que tem grande afinidade com o nitrogênio”, como explicou à equipe de checagem da AFP Nicolás Roux, chefe de Reabilitação e Cuidados Respiratórios do Hospital Italiano de Buenos Aires, na Argentina.

Os concentradores de oxigênio são usados em pacientes com hipoxemia, ou seja, com baixos níveis de oxigênio no sangue. A OMS recomenda seu uso em regiões onde cilindros de oxigênio ou sua recarga são escassos. 

“Existem certas doenças que afetam a capacidade dos pulmões de fazer uma troca correta de gases, ou seja, eliminar o dióxido de carbono e receber o oxigênio. [...] A covid-19 é uma dessas doenças”, acrescentou Roux.

Após ver uma das gravações viralizadas nas redes sociais, o pneumologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) Rodolfo Behrsin indicou ao Checamos que as pessoas que usam esses artefatos caseiros estão “respirando o ar ambiente, não oxigênio, como seria o caso. O ar ambiente tem em torno de 21% de oxigênio, enquanto o oxigênio fornecido no cilindro tem [uma concentração] em torno de 99%”. E adicionou: 

A enfermidade provocada pelo vírus SARS-CoV-2 “causa pneumonia, uma infecção que inflama um ou ambos os pulmões e pode enchê-lo de líquido ou material purulento [...] por isso o paciente apresenta falta de ar e baixa oxigenação”, afirmou à AFP Ramón Aguilar, presidente no México da Sociedade Latino-Americana de Cuidados Respiratórios.

A razão para fornecer oxigênio, continuou Aguilar, é ajudar as áreas dos pulmões “sem líquido ou material purulento a oxigenar melhor e, assim, diminuir o trabalho respiratório, diminuir ou eliminar a falta de ar e o trabalho do coração”.

Image

Diagrama de funcionamento de um concentrador de oxigênio, publicado no documento “Technical Specifications For Oxygen Concentrators” da OMS. Captura de tela feita em 3 de fevereiro de 2021 

Dispositivos caseiros

Nos vídeos compartilhados nas redes sociais, as pessoas afirmam ter criado um respirador caseiro a partir de inaladores ou nebulizadores.

A respeito desses dispositivos, o pneumologista e professor da Unirio explica: “A ponta da primeira borracha fica dentro da água, faz aquela borbulha e, segundo essas pessoas, ao passar dentro da água ocorre uma concentração desse oxigênio. Mas isso não ocorre: porque simplesmente passar por dentro da água não é capaz de transformar ar em oxigênio, concentrar. É diferente do concentrador de oxigênio”.

Nesse sentido Roux alertou: “Pela complexidade de seu funcionamento [do concentrador de oxigênio] e por ser um equipamento de uso medicinal, não é possível sua fabricação de modo caseiro”.

Aguilar também afirmou que os dispositivos divulgados nas redes sociais fazem o ar circular com uma concentração de oxigênio idêntica à do ambiente, enquanto a concentração de oxigênio que um paciente com hipoxemia precisa é de cerca de 90%.

Em suas especificações técnicas sobre esses dispositivos, a OMS estabelece que “o concentrador deverá ser capaz de fornecer um fluxo contínuo de oxigênio a uma concentração maior do que 82%”.

“Uma consequência de usar um compressor de ar é que o paciente continuará oxigenando mal ao não receber uma concentração alta de oxigênio [...] seu coração trabalhará mais e corre o risco de lesionar as partes saudáveis do pulmão, o que pode levar à morte”, alertou Aguilar.

No mesmo sentido falou Berhsin: se o paciente “está com os níveis de oxigênio baixos, ele vai continuar”, pois esses dispositivos caseiros sequer funcionam temporariamente, “pelo contrário, podem até enganar a pessoa, procurando mais tardiamente pelo oxigênio”.

O Checamos enviou os vídeos viralizados à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e questionou se poderiam ser indicados em caso de falta de fornecimento de oxigênio. “A segurança e eficácia de tais dispositivos não foi avaliada pela Anvisa. Orientamos o uso de produtos regularizados na Agência”, respondeu a sua assessoria.

Em resumo, de acordo com especialistas e autoridades de saúde, não é possível elaborar um “respirador caseiro” a partir da adaptação de inaladores ou nebulizadores, pois esses dispositivos não geram a concentração de oxigênio necessária para um paciente com covid-19 e podem provocar efeitos nocivos.

Há alguma informação que você gostaria que o serviço de checagem da AFP no Brasil verificasse?

Entre em contato conosco