A França não fica com 50% das exportações de países africanos, como disse Giorgia Meloni
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- Publicado em 2 de dezembro de 2022 às 20:19
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- Por Nathan GALLO, AFP França, AFP Espanha, AFP Brasil
- Tradução e adaptação Adrià LABORDA
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“Ouça e entenda antes de sair falando besteira. GEORGIA MELONI, PRIMEIRA MINISTRA DA ITÁLIA, ACUSA A FRANÇA DE EXPLORAR PAÍSES POBRES AFRICANOS”, escreveram usuários ao compartilhar o vídeo no Facebook, Kwai, TikTok e Twitter.
O conteúdo também circula em espanhol, francês, inglês e italiano.
O vídeo que circula nas redes sociais é o trecho de uma entrevista concedida por Meloni em janeiro de 2019 ao programa italiano "Non è l'Arena", na qual a então deputada do partido “Irmãos da Itália”, e agora primeira-ministra do país, acusava a França de ter montado um sistema no qual, em troca da impressão do franco CFA, 50% das exportações dos 14 países que adotam a moeda deveriam ir parar “nos cofres do Tesouro francês”.
“O ouro que esse menino extrai acaba quase inteiramente nos cofres do Estado francês”, disse Meloni, segurando a foto de uma criança trabalhando em uma mina em Burkina Faso. "A solução é libertar a África de certos europeus que a exploram e deixá-los viver com o que têm!", continuou.
A sequência começou a ser compartilhada nas redes após o governo francês criticar a política de imigração italiana. Em 10 de novembro de 2022, o ministro do Interior da França, Gérald Darmanin, considerou “inaceitável” que as autoridades italianas se recusassem a aceitar os 234 migrantes resgatados no final de outubro pelo navio Ocean Viking, da organização humanitária SOS Mediterranée, e que acabou atracando em território francês.
Sites como Daily Mail e Sky News Australia publicaram a entrevista em novembro de 2022 como se esta fosse uma resposta direta às críticas francesas.
O franco CFA é uma moeda criada após a Segunda Guerra Mundial. Inicialmente, foi batizada como “franco das Colônias Francesas da África”, mas mudou de nome quando as nações se tornaram independentes. O franco CFA se tornou, assim, o denominador comum das moedas de duas uniões monetárias compostas por 14 países africanos, reunidos na chamada zona do franco CFA.
Benin, Togo, Burkina Faso, Níger, Mali, Senegal, Guiné-Bissau e Costa do Marfim fazem parte da União Econômica e Monetária do Oeste Africano (UEMOA). Já Camarões, República Centro-Africana, Chade, República do Congo, Guiné Equatorial e Gabão estão incluídos na Comunidade Econômica e Monetária da África Central (CEMAC). Todos esses países, exceto Guiné-Bissau e Guiné Equatorial, foram colônias francesas.
Três especialistas da zona do franco CFA explicaram à AFP que os argumentos de Giorgia Meloni sobre essa moeda são enganosos, além de obsoletos.
França não recupera 50% das exportações dos países africanos
Ao contrário do que alega Meloni, nem Burkina Faso nem qualquer outro Estado que usa o franco CFA é obrigado a dar à França 50% de suas receitas de exportação. "É uma afirmação que não se sustenta e revela uma incapacidade de entender os mecanismos monetários", afirmou à AFP Massimo Amato, professor da Universidade Bocconi de Milão e especialista em questões monetárias na África, em 22 de novembro de 2022.
“Há um erro de sua parte: não é 50% das exportações. É 50% das reservas cambiais dos países do franco CFA que são depositadas no Tesouro francês”, confirmou Demba Moussa Dembélé, economista senegalês, entrevistado pela AFP em 23 de novembro de 2022.
Na realidade, Giorgia Meloni se refere à obrigação dos 14 Estados da zona do franco a depositarem 50% das suas reservas internacionais em uma conta do Tesouro Público francês.
As reservas internacionais são poupanças destinadas a manter a estabilidade da moeda. Em 1945, a taxa de câmbio do franco CFA foi vinculada ao franco e, depois, ao euro para garantir a conversão e a estabilidade da moeda.
Em troca dessa garantia de conversão, os Estados da UEMOA e da CEMAC foram obrigados a centralizar 50% das reservas internacionais no Tesouro francês.
O fato de o franco CFA ter uma taxa de câmbio fixa em relação ao euro – um euro equivale a cerca de 655 francos CFA – não é benéfico apenas para a França.
"Os países exportadores que poderiam se beneficiar dessa taxa de câmbio fixa são todos os países-membros da zona do euro, como a Itália", apontou Pierre Jacquemot, especialista em África do think tank Fondation Jean Jaurès, que considerou "absurdo" o argumento da primeira-ministra italiana.
Reservas pertencem aos Estados africanos
Conforme explicado por todos os especialistas entrevistados, essas reservas sempre pertenceram aos Estados africanos. "O Tesouro francês é simplesmente o fiador, o banco onde essas moedas são depositadas", disse Jacquemot.
“As reservas do Banco Central são enviadas para uma conta administrada pela França em nome dos bancos centrais africanos. Essas reservas são investidas e esse retorno é devolvido a eles”, afirmou Amato.
Em seu discurso, Meloni menciona a "senhoriagem", direito que a França teria de arrecadar dinheiro por emitir a moeda. Embora as cédulas sejam impressas na França, o Estado francês não emite esta moeda e não recolhe quaisquer impostos relacionados à sua fabricação.
A porta-voz do Ministério da Europa e Relações Exteriores Anne-Claire Legendre lembrou em seu Twitter em 23 de novembro de 2022: “O Banco da França imprime os francos CFA como parte de uma relação contratual tradicional de cliente/fornecedor com os bancos centrais emissores”.
Legendre também explicou que os bancos centrais dos Estados do Oeste da África (BCEAO) e dos Estados da África Central (BEAC) são “livres para fabricarem ou contratarem outra gráfica”.
Além disso, o BCEAO e o BEAC decidem o número de cédulas que desejam imprimir e colocar em circulação, embora tenham algumas limitações, como o controle da inflação. Cada país também é livre para sair da zona do franco a fim de emitir a própria moeda, como fizeram Guiné, Mauritânia e Madagascar.
No entanto, os críticos do franco CFA há anos consideram essa condição de 50% uma dependência humilhante da França. Esse mecanismo foi criado em 1945 "porque a França considerou que os Estados que ainda estavam sob a dependência francesa não tinham maturidade suficiente para administrar suas próprias moedas", descreveu Jacquemot.
Há vários anos, muitos economistas pedem o fim dessa contrapartida vinculada ao câmbio fixo. “É um absurdo ter as nossas reservas cambiais trancadas no Tesouro francês”, disse o economista, ex-ministro togolês e defensor de uma reforma do franco CFA Kako Nubukpo, em entrevista de 2015.
Uma obrigação revogada em 2020 para os países da África Ocidental
Desde 2020, essa obrigação foi abolida para os oito países da União Econômica e Monetária do Oeste Africano, como parte de uma reforma do franco CFA anunciada em dezembro de 2019 pelo presidente francês, Emmanuel Macron, e por seu homólogo marfinense, Alassane Ouattara. Entre esses oito países está Burkina Faso, especificamente mencionado por Meloni.
O presidente marfinense anunciou “o fim da centralização de 50% das reservas no Tesouro francês”.
“50% das divisas obtidas pelos países da zona do franco ocidental africano, e que se encontravam no Tesouro francês, foram repatriadas para o Banco Central dos Estados da África Ocidental. Portanto, esse vínculo com a França não existe mais”, explicou Jacquemot.
Essa reforma torna desatualizadas as falas de Giorgia Meloni, além de falsas.
A falta de soberania monetária
Para além da gestão das reservas, a reforma do franco CFA não afetou o problema da rigidez da taxa de câmbio, ainda ligada ao euro. "O absurdo fundamental do sistema da zona do franco, tanto hoje como ontem, é que a moeda está atrelada ao euro, que evolui de acordo com a própria conjuntura", descreveu Jacquemot.
Moussa Dembélé, por sua vez, denunciou uma “política monetária muito restritiva”, isso porque “a zona do euro e nossos países estão em níveis de desenvolvimento extremamente diferentes”, argumentou.