(Evaristo Sa / AFP)
Quem já teve covid-19 pode se beneficiar da vacina, ao contrário do afirmado por Bolsonaro
- Este artigo tem mais de um ano
- Publicado em 18 de dezembro de 2020 às 22:05
- Atualizado em 21 de dezembro de 2020 às 19:07
- 5 minutos de leitura
- Por AFP Brasil
Copyright © AFP 2017-2025. Qualquer uso comercial deste conteúdo requer uma assinatura. Clique aqui para saber mais.
O presidente, que tem frequentemente minimizado a covid-19, testou positivo para a doença em 7 de julho deste ano. Na época, afirmou se sentir “perfeitamente bem” e estar apenas com sintomas leves. No dia 25 do mesmo mês, testou negativo para o SARS-CoV-2.
Desde o início da pandemia, o Brasil já registrou mais de 184 mil mortes pelo novo coronavírus e, agora, dá os primeiros passos para iniciar a vacinação contra a doença em 2021. Entre eles, um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que decidiu pela possibilidade de aplicar medidas restritivas àqueles que não tomarem a vacina contra a covid-19.
Comentando esse julgamento no evento em Porto Seguro, Bolsonaro deu declarações enganosas. Checamos, abaixo, duas delas:
Mas não é verdade que pessoas que já tiveram o novo coronavírus não precisam se vacinar, explicaram especialistas ao AFP Checamos.
Quando uma pessoa contrai a covid-19, ela costuma desenvolver a chamada imunidade natural, afirmou Flávio da Fonseca, virologista do Centro de Tecnologia em Vacinas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No entanto, “ainda não há uma precisão relacionada ao tempo de duração dessa imunidade”.
Como indicam os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, os especialistas não sabem por quanto tempo uma pessoa fica protegida após se recuperar da covid-19. “Evidências iniciais sugerem que a imunidade natural pode não durar muito”, afirma a organização.
Há, ainda, casos de pessoas que contraem o novo coronavírus e não desenvolvem imunidade contra a doença, indicou Fonseca.
“Há pessoas que podem não desenvolver nada, isso varia muito de pessoa para pessoa. [...] O meu sistema imune é diferente do seu, por exemplo. Eu posso ter condições clínicas que você não tem, ou vice-versa. Isso tudo afeta a forma como o meu organismo responde. Até condições como nutrição, estresse, tudo isso vai afetar a competência do sistema imunológico”, afirmou o especialista.
Em dezembro, foram confirmados os dois primeiros casos de reinfecção de covid-19 no país: uma profissional da área da saúde teve a doença em junho e testou positivo novamente em outubro, e uma moradora do estado de São Paulo se infectou em junho e depois de novo em novembro. Outros casos já foram confirmados ao menos na Bélgica, Holanda, Equador, Hong Kong e Estados Unidos.
“A reinfecção é uma prova cabal de que a gente precisa vacinar mesmo quem teve covid-19. Não bastasse isso, a resposta imune ainda é grandemente desconhecida. A gente não sabe se ela vai durar, quanto tempo dura, nem se é uma resposta completamente protetora”, indicou ao AFP Checamos Evaldo Stanislau, médico infectologista do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).
O virologista Flávio da Fonseca citou um dos motivos que podem comprometer essa imunidade natural:
“O coronavírus é um vírus agressivo e que tem vários genes, e dentre esses genes, vários que ajudam o vírus a se esconder do nosso sistema imunológico. [...] Então a resposta imune gerada pela infecção é afetada pelas estratégias do vírus de fugir do nosso sistema imunológico”, explicou.
Isso não ocorre com a imunidade gerada pela vacinação. “Quando você é imunizado com uma vacina, você não tem no corpo o componente vírus. O que você tem são outras moléculas que mimetizam uma infecção viral. [...] Então não existem esses componentes que interferem na nossa resposta imune”, afirmou Fonseca.
“É absolutamente esperado que a resposta vacinal seja diferente da resposta à infecção natural, ela pode ser, inclusive, mais longeva do que a imunidade gerada pela infecção natural”, apontou o virologista.
De maneira semelhante, Stanislau explicou que, por contar com uma preparação diferenciada, a imunidade gerada pela vacina é muito mais específica. “Pelo menos nos dados in vitro que a gente tem visto, ela assegura uma produção de anticorpos, e uma produção de resposta imune muito rigorosa, provavelmente mais rigorosa do que a infecção natural no caso da covid-19”, disse.
Questionado se pessoas que já contraíram a covid-19 também se beneficiariam da imunidade gerada pela vacinação, Stanislau foi contundente: “Mas, sem dúvida nenhuma. Isso é uma verdade absoluta”.
Procurado pela equipe de checagem da AFP, o Ministério da Saúde informou que, no Brasil, as vacinas serão recomendadas “inicialmente para os indivíduos contemplados nos grupos alvos pré-determinados para cada fase da campanha, independente do histórico prévio da doença”.
A comparação feita por Bolsonaro entre o tratamento de câncer e a vacinação contra covid-19 também foi considerada enganosa por especialistas.
“É ridícula. É absolutamente irresponsável”, opinou Flávio da Fonseca. “A vacina tem dois lados. Ela tem o lado individual, que é a sua proteção. Mas ela tem o componente coletivo muito forte. A maior importância da vacina é o coletivo”, acrescentou.
“Se você tem grupos de pessoas que não se vacinam, o que acontece é que essas pessoas continuam sendo reservatórios de vírus, porque elas permanecem susceptíveis, e com isso você não consegue alcançar as taxas de cobertura vacinal necessárias para que se elimine completamente a circulação viral”, disse o virologista.
Stanislau concordou: “Quando a gente faz uma campanha de vacinação na comunidade, a gente tem como meta o indivíduo e o todo. O indivíduo, ok, tomou a vacina ele está protegido. Mas quanto mais indivíduos [...] se vacinam, mais a gente protege o todo”.
“Quando o presidente diz uma coisa como essas, ele negligencia esse conceito que é primário em imunização”, concluiu Stanislau.
(Ariana Drehsler / AFP)
Em checagem publicada em setembro, a professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Cristina Bonorino, já havia explicado ao AFP Checamos a importância da vacinação para a sociedade como um todo.
“Ao não se vacinar, a pessoa tem que entender que ela não está só se colocando em risco [...]. Ela está colocando em risco a comunidade onde ela vive. Ela está colocando em risco a família dela, ela está colocando em risco os amigos dela, porque ela abre uma porta para circulação do patógeno”, pontuou.
O câncer e a covid-19 são, ainda, doenças muito distintas, sendo a primeira causada por “células do próprio corpo que se tornaram rebeldes”, e a última por um vírus. Em checagem sobre comparação entre a vacina contra o novo coronavírus e os estudos em busca de uma vacina contra o câncer, o professor Jean-Daniel Lelièvre, chefe do departamento de Imunologia Clínica do Hospital Universitário Henri Mondor, considerou “estúpido” comparar “doenças tão diferentes”.
EDIT 21/12: Atualiza com resposta do Ministério da Saúde