Não, um estudo da Universidade de Stanford não indicou que máscaras são ineficazes contra a covid
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- Publicado em 22 de abril de 2021 às 23:39
- Atualizado em 5 de maio de 2021 às 15:08
- 6 minutos de leitura
- Por François D'ASTIER, AFP França
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“Você[s] ouviram sobre o estudo revisado por pares feito pela Universidade de Stanford que demonstra, além de qualquer dúvida razoável, que as máscaras têm absolutamente nenhuma chance de impedir a disseminação do Covid-19? Não?”, questiona um usuário em uma das publicações no Facebook (1, 2, 3).
Versões semelhantes somam mais de 2 mil interações desde o último 9 de abril no Instagram (1, 2, 3) e no Twitter, por vezes acompanhadas pela captura de tela de um texto, intitulado: “Resultados do estudo de Stanford: máscaras faciais são ineficazes para bloquear transmissão de COVID-19 e realmente podem causar deterioração da Saúde e morte prematura”.
As publicações direcionam os leitores a um artigo hospedado na plataforma PubMed: “Facemasks in the COVID-19 era: A health hypothesis” (Máscaras faciais na era de covid-19: uma hipótese de saúde). Versões semelhantes também circulam em espanhol e francês.
Após a viralização do conteúdo, o presidente Jair Bolsonaro - crítico frequente do uso de máscaras - chegou a dizer a apoiadores que iria divulgar em breve “um estudo da Universidade de Stanford” sobre o uso do equipamento de proteção.
Estudo não é da Universidade de Stanford
Muitas das postagens expressam surpresa com o fato de as conclusões deste “estudo” - supostamente conduzido pela prestigiosa universidade norte-americana de Stanford - não terem sido veiculadas pela “grande mídia”.
No entanto, “este estudo sobre a eficácia das máscaras contra a covid-19 não é ‘um estudo da Stanford’”, explicou à AFP Julie Greicius, porta-voz da faculdade de Medicina de Stanford, no último dia 20 de abril.
O artigo não foi publicado pela universidade, como é possível confirmar em seu site, mas pela revista norte-americana Medical Hypotheses.
De acordo com seu editorial, essa revista tem como objetivo “publicar artigos teóricos” baseados em “ideias científicas radicais, especulativas e não tradicionais, desde que expressas de forma coerente”.
A revista foi notavelmente questionada por parte da comunidade científica por ter publicado, em 2009, artigos que contestavam a ligação entre o vírus HIV e a Aids.
Seu atual editor, Mehar Manku, explicou à revista Science em 2010 que o sistema de publicação da revista era baseado em um processo de “revisão por pares [peer-review] não convencional”, “feito sob medida”, “de acordo com o objetivo da revista, de publicar novas ideias radicais”.
A presença do estudo na plataforma PubMed, que pertence à Biblioteca Nacional de Medicina e é vinculada aos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH) não atesta sua confiabilidade, ao contrário do que também é afirmado nas redes.
“Observe que a presença de qualquer artigo ou citação específica em publicações físicas ou eletrônicas da biblioteca, incluindo o PubMed, não significa uma validação, uma aprovação ou uma promoção de seu conteúdo”, explicou um porta-voz do NIH à AFP em agosto de 2020.
O autor do estudo viralizado é, na verdade, Baruch Vainshelboim. Segundo a plataforma PubMed, ele trabalhava no serviço de Cardiologia de um hospital militar de Palo Alto, que efetivamente possui uma parceria com a Universidade de Medicina de Stanford.
Isso não significa, contudo, que ele é um pesquisador “de Stanford”.
“A Universidade de Stanford nunca contratou Baruch Vainshelboim. Em 2015, ele foi pesquisador convidado em Stanford por um ano, em assuntos não relacionados a este artigo”, explicou Julie Greicius.
De acordo com sua conta no LinkedIn, Baruch Vainshelboim é doutor em Filosofia pela Universidade do Porto, em Portugal, e fisiólogo.
Em 26 de abril, esse estudo foi retirado da revista Medical Hypotheses a pedido do editor-chefe da publicação e de sua editora, Elsevier.
De acordo com a comissão editorial da revista, “uma revisão mais ampla das evidências científicas existentes mostra claramente que as máscaras aprovadas com a certificação correta, e usadas em conformidade com as diretrizes, são uma prevenção eficaz contra a transmissão da covid-19”.
“Uma investigação interna subsequente conduzida pelo editor-chefe e pela editora determinou que esse artigo foi revisado externamente por pares, mas não com os nossos padrões habituais de rigor antes de sua publicação”, detalha a nota para justificar a retratação.
Conclusões incorretas
O artigo da revista Medical Hypotheses “resume de forma abrangente as evidências científicas relacionadas ao uso de máscaras faciais na era da covid-19”, de acordo com sua introdução.
Com base em cerca de sessenta referências escolhidas por ele mesmo, Baruch Vainshelboim chega a três hipóteses em sua conclusão:
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“Os dados sugerem que as máscaras médicas e não médicas são ineficazes para bloquear a transmissão inter-humana de doenças virais e infecciosas como o SARS-CoV-2 e a covid-19”.
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“Foi demonstrado que o uso de máscaras faciais tem substanciais efeitos adversos fisiológicos e psicológicos como, entre outros, ‘hipóxia, hipercapnia, falta de ar e aumento da acidez e da toxicidade’”.
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“As consequências a longo prazo do uso de máscaras faciais podem causar uma deterioração da saúde, o desenvolvimento e a progressão de doenças crônicas e uma morte prematura”.
No entanto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera o uso de máscaras uma medida eficaz para limitar a propagação da covid-19, somada ao distanciamento físico e à higienização das mãos. A máscara é ainda mais eficaz quando utilizada maciçamente, porque os usuários se protegem mutuamente.
Uma meta-análise publicada em maio de 2020 na revista científica Royal Society, no Reino Unido, também atesta a eficácia das máscaras para reduzir a projeção de gotículas contaminadas.
Uma outra da Lancet, datada de junho de 2020, assegura que o uso de máscara reduz consideravelmente as chances de transmissão inter-humana do vírus. Uma terceira, publicada pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos em janeiro de 2021, chegou a conclusão semelhante.
Pesquisa realizada pela organização sem fins lucrativos Mayo Clinic, em dezembro de 2020, concluiu, por sua vez, que o uso de máscaras é “a medida mais importante para reduzir o risco de exposição à covid-19”.
Desde o início da pandemia, a AFP refutou inúmeras alegações sobre supostos efeitos nocivos do uso de máscaras, como a afirmação de que a medida de prevenção provocaria falta de oxigênio, “danos neurológicos irreversíveis” ou ainda faria com que as pessoas respirassem “mofo”.
Questionado pela AFP em maio de 2020, Claudio Méndez, professor de Saúde Pública da Universidade Austral do Chile, negou que a utilização de máscaras pudesse provocar hipóxia, já que o material permite a passagem do ar.
“Até o presente, as máscaras N95 - ou as máscaras de tecido - foram testadas para não alterar as funções fisiológicas das pessoas”, explicou.
Em sua seção de mitos sobre a covid-19, a OMS explica que as máscaras não são perigosas para a saúde, se utilizadas corretamente:
“O uso prolongado de máscaras médicas pode ser desconfortável, mas não causa nem intoxicação por CO2, nem falta de oxigênio. Ao usar uma máscara médica, certifique-se de que ela esteja corretamente ajustada e suficientemente apertada para que você possa respirar normalmente. Não reutilize máscaras descartáveis e troque-as assim que ficarem húmidas”.
A máscara não causa nem hipóxia, nem hipercapnia, nem um aumento perigoso da taxa de acidez no sangue, de acordo com múltiplos especialistas consultados pela AFP.
Por fim, Jean-Luc Gala, chefe da Clínica Universitária Saint Luc, em Bruxelas, e especialista em doenças infecciosas, explicou, neste artigo, que o uso de máscaras não representa um risco para o sistema imunológico nem provoca o surgimento de enfermidades.
“Os profissionais de saúde passam oito horas por dia com uma máscara e não desenvolvem infecções secundárias ou problemas de saúde”, destacou Yves Coppieters, médico epidemiologista e professor de Saúde Pública da Universidade Livre de Bruxelas (ULB).
EDIT 05/05: Acrescenta menção à retratação do estudo