Presidente Jair Bolsonaro participa de cerimônia no Palácio do Planalto, em Brasília, em 19 de agosto de 2020 (AFP / Evaristo Sa)

Incêndios e pandemia: checamos discurso de Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU de 2020

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  • Publicado em 23 de setembro de 2020 às 00:33
  • Atualizado em 23 de setembro de 2020 às 14:55
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  • Por AFP Brasil
Em pronunciamento em vídeo transmitido em Nova York para abrir uma Assembleia Geral da ONU adaptada à pandemia do novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro falou sobre os incêndios que afetam a Amazônia e o Pantanal e defendeu a atuação de seu governo durante a crise de saúde provocada pela covid-19. Abaixo, o AFP Checamos analisou algumas das principais declarações do mandatário durante o seu discurso.

Pandemia de Covid-19

Apesar de realmente ter demonstrado preocupação com as consequências da pandemia para a economia brasileira desde o início do surto de covid-19, não é verdade que o presidente Jair Bolsonaro alertou “desde o princípio” para a necessidade de combater o novo coronavírus.

No dia em que o Brasil registrou a primeira morte pela doença, em 17 de março, Bolsonaro indicou ver “histeria” em algumas medidas implementadas para reduzir a propagação da doença.

Em pronunciamento à população em 24 de março, quando o Brasil registrava 46 óbitos  e mais de 2.200 casos confirmados de covid-19, o presidente se referiu à doença como uma “gripezinha”. “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho”, afirmou.

Alguns dias depois, em 27 de março, colocou em dúvida os dados de mortes pela doença no estado de São Paulo, que registrava 58 óbitos no momento.

“Não pode ser um jogo de números para favorecer interesses políticos. Não estou acreditando nesses números de São Paulo, até pelas medidas que ele [o governador João Doria] tomou”, disse Bolsonaro em entrevista à Band TV.

No mesmo mês, saiu para passear em Brasília, provocando pequenas aglomerações - já desencorajadas na época, inclusive por seu ministro da Saúde  - e disse que o vírus precisaria ser enfrentado mas “não como um moleque”. “Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia”, acrescentou.

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Presidente Jair Bolsonaro tira selfie com apoiadores após manifestação em Brasília, organizada apesar da orientação para evitar aglomerações, em 15 de março de 2020

O Supremo Tribunal Federal (STF) efetivamente julgou ações determinando a prerrogativa de estados e municípios no estabelecimento de medidas de combate à pandemia. As decisões não excluíam, contudo, a capacidade da União de adotar ações para enfrentar a crise.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341, por exemplo, o STF julgou um pedido do Partido Democrático Trabalhista (PDT) pela suspensão de dispositivos da Medida Provisória 926/202, que previa, entre outros itens, que o presidente da República seria responsável por determinar os serviços e atividades considerados essenciais durante a pandemia e que, portanto, não seriam afetados por eventuais paralisações.

Na decisão, do final de março, a corte aceitou parte do pedido do PDT, solicitando que fosse explicitado que “as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória (MP) 926/2020 para o enfrentamento do novo coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios”.

Em entrevista em junho deste ano, a ministra do STF Cármen Lúcia explicou que a corte entendeu que tanto os estados e municípios, quanto a União, têm responsabilidade no enfrentamento da pandemia.

“O que o Supremo disse é que a responsabilidade é dos três níveis — e não é hierarquia, porque na federação não há hierarquia —- para estabelecer condições necessárias, de acordo com o que cientistas e médicos estão dizendo que é necessário, junto com governadores, junto com prefeitos”, afirmou a ministra.

Para ajudar os trabalhadores informais, os desempregados e aqueles que tiveram sua renda reduzida devido às paralisações impostas para combater a propagação do novo coronavírus no Brasil, o governo federal implementou o auxílio emergencial que, segundo dados oficiais, realmente foi entregue a mais 65 milhões de pessoas.

O valor do benefício em dólar foi, no entanto, exagerado pelo presidente. Desde abril, o governo pagou cinco parcelas de R$ 600 aos beneficiários. Em setembro, o auxílio foi prorrogado, e contará com mais quatro parcelas de R$ 300.

Somando todas as parcelas, incluindo as que ainda não foram pagas, o total é de R$ 4.200, pouco mais de U$ 773, segundo câmbio do Banco do Brasil. O valor é cerca de 20% menor do que o citado por Bolsonaro.

O valor supera, no entanto, o pago a mães solteiras provedoras da família, que tem direito a receber todas as parcelas em dobro, totalizando R$ 8.400, ou cerca de U$ 1.546. 

Após a publicação deste texto, a Secretaria Especial de Comunicação (Secom) explicou que o número citado por Bolsonaro era uma média do benefício recebido pela população em geral e por 10,7 milhões de mães solteiras. O valor não foi pago, contudo, aos 65 milhões de beneficiários como afirmado pelo presidente.

Não é verdade que não faltaram recursos nos hospitais brasileiros para atender pacientes de covid-19 durante a pandemia.

Em abril deste ano, um informe do Ministério da Saúde destacava que o Brasil ainda não tinha a quantidade suficiente de respiradores, leitos de terapia intensiva, pessoal qualificado e testes diagnósticos para fazer frente à “fase mais aguda” da pandemia do novo coronavírus.

Logo, veículos de comunicação passaram a reportar as consequências destas carências.

Em abril, a médica Valdiléa Veloso, diretora do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, contou à AFP que sua equipe, referência no combate da COVID-19 no Rio de Janeiro, já enfrentava falta de equipamentos de proteção.

No final do mesmo mês, um cirurgião-geral que trabalhava em uma emergência no Rio de Janeiro relatou à mídia que não havia respiradores para todos os pacientes, obrigando a equipe a escolher quais vidas salvar.

Cenário semelhante foi narrado por uma médica que trabalhava na linha de frente do combate à covid-19 em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) no Acre, em maio. Em junho, o Conselho Municipal de Saúde de Belo Horizonte também denunciou a falta de respiradores em uma UPA da capital mineira.

Chamas na Amazônia e no Pantanal

Para explicar os incêndios que afetam a floresta amazônica, onde foram registrados 71.673 focos ativos desde o início do ano, Bolsonaro sugeriu que as chamas são causadas por caboclos e indígenas que ateariam fogo na terra para prepará-la para a agricultura.

Embora essa seja uma técnica efetivamente empregada por povos indígenas brasileiros, um levantamento do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) de setembro do ano passado concluiu que uma grande proporção dos incêndios que afetam a região está atrelada ao desmatamento. 

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Chamas consomem vegetação da floresta amazônica, no Pará, em 15 de agosto de 2020

Para tal, o instituto analisou os locais onde foram registrados focos de calor no bioma Amazônia de 1º de janeiro a 29 de agosto, no período de 2011 a 2019. Os resultados indicaram que a maior parte dos focos de incêndio está concentrada em propriedades privadas (PP).

Além disso, ao contrário do que afirmou o presidente, o IPAM concluiu que as áreas protegidas por indígenas estavam, em grande parte, livres de desmatamento e longe das chamas.

Com 16.119 focos ativos de janeiro até 21 de setembro deste ano - contra 6.052 no mesmo período do ano passado-, o Pantanal enfrenta um número recorde de incêndios, que têm devastado sua fauna e flora.

Embora a seca seja, em parte, responsável pelo desastre, ela não é a única explicação, como já indicou à AFP o engenheiro florestal Vinícius Silgueiro, do Instituto Centro de Vida (ICV).

“A substituição de plantas nativas por pastagens exóticas” fragilizou a resistência da vegetação, afirmou o especialista, destacando, também, que queimadas para limpar o terreno geram incêndios e que essa prática persiste, devido à “sensação de impunidade” que prevalece pelo “enfraquecimento dos órgãos públicos de proteção ambiental e pelo corte de recursos”

A Polícia Federal e órgãos do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul identificaram, de fato, indícios de que os incêndios que afetam o Pantanal podem ter em sua origem ações humanas. Entre as hipóteses investigadas, está a de que proprietários autorizados a queimar parte de sua vegetação para limpar as terras tenham perdido o controle das chamas. 

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Crocodilo morto ao longo da rodovia Transpantaneira, no Mato Grosso, em 14 de setembro de 2020

Há, ainda, especialistas que apontam que os incêndios no Pantanal podem ser potencializados pelo desmatamento na Amazônia, já que isso afeta a umidade da atmosfera, interferindo no ciclo das chuvas, o que pode intensificar os períodos de seca e, por sua vez, propiciar mais incêndios.

EDIT 23/09: Atualiza com posicionamento da Secom sobre valor do auxílio emergencial

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