Grã-Bretanha não reconheceu mais hospitalizações de vacinados, é uma projeção científica

“O governo britânico reconhece em um documento oficial que ‘o ressurgimento de hospitalizações e mortes é dominado por aqueles que receberam duas doses da vacina’”, essa era a afirmação vista em publicações compartilhadas dezenas de vezes nas redes sociais desde o último dia 6 de maio. O texto ao qual fazem referência é, na verdade, uma projeção dos cenários que podem ocorrer no Reino Unido e não retrata a situação atual da pandemia de coronavírus.

 

“E agora? Organização Mundial da Saúde - OMS Facebook app vai me censurar por compartilhar informação verdadeira? Foi o próprio Boris Johnson Que deu essa declaração!”, diz a legenda de uma das publicações compartilhadas no Facebook (1, 2), acompanhada de uma foto do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, e a chamada do ressurgimento das hospitalizações.

A alegação também foi encontrada em um grupo do Telegram, onde mais de 15,8 mil usuários visualizaram o conteúdo. No Twitter (1, 2), por sua vez, uma indicação semelhante circula desde o último dia 7 de abril, mas sem mencionar um suposto reconhecimento por parte do governo do Reino Unido. 

Essas afirmações foram igualmente feitas em francês e espanhol. Algumas postagens em português disponibilizam o link para o site Tierra Pura, indicado-o como fonte.

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Combinação de capturas de tela feita em 21 de maio de 2021 de publicações no Facebook e no Twitter
 

Alguns artigos e postagens nas redes sociais incluem um link para um relatório no portal do Executivo britânico. O documento é real, mas não reflete a situação no Reino Unido no momento de sua conclusão, em 31 de março de 2021. Na verdade, se trata de um dos cenários, previsto na página 21, pelo qual o país poderia passar caso houvesse uma nova onda de contágios de coronavírus.

A previsão foi elaborada pela Universidade de Warwick e incluída em um informe dirigido aos cientistas que assessoram o governo para frear a pandemia de covid-19.

O título do relatório, em tradução livre para o português, é: “Resumo de outras modelagens de flexibilização de restrições - Roteiro Etapa 2”.

O Reino Unido saiu da segunda onda de coronavírus, como se pode ver nesse gráfico do governo britânico a respeito das mortes diárias pelo vírus.

No final de fevereiro de 2021, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, anunciou a flexibilização do confinamento por etapas para seus concidadãos. Os terraços e comércios foram reabertos em 12 de abril, e desde 17 de maio foram novamente permitidos encontros em casa para, no máximo, seis pessoas, além de férias no exterior. 

O governo espera poder suspender a maioria das restrições até 21 de junho.

O relatório é uma advertência

A Universidade de Warwick, a London School of Hygiene and Tropical Medicine (LSHTM) e o Imperial College advertiram no início de abril, no relatório mencionado, que esse roteiro para a redução das restrições poderia levar a uma terceira onda de contágios, como explica o Imperial College em seu site.

Pesquisadores desses centros estabeleceram cenários possíveis para os próximos meses, retomados por um resumo do SPI-M, um grupo científico de projeções sobre a gripe pandêmica, que aconselha o Executivo. O relatório da universidade foi publicado no início de abril no site do governo.

O trecho viralizado aparece no ponto 32 do relatório, na página dez: “O aumento tanto das hospitalizações como das mortes está dominado por aqueles que já receberam as duas doses da vacina, respondendo por 60% e 70% da onda, respectivamente. Isso pode ser atribuído aos altos níveis de aplicação da vacina nos grupos etários de maior risco, de modo que as falhas na imunização têm mais peso nas formas graves da doença do que as pessoas não vacinadas. Isso é discutido mais adiante nos parágrafos 55 e 56”.

Entretanto, o parágrafo anterior do documento - o ponto 31 - recorda que se trata de uma projeção de algo que poderia acontecer, não da situação vigente: “Todos os cenários desses três grupos levam a uma terceira onda diferente; há uma incerteza significativa tanto no momento como na escala do pico [de contágios].

Embora as publicações viralizadas reproduzam algum desses trechos, não advertem de que se trata de uma projeção, além de induzirem ao temor sobre os efeitos das vacinas.

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Centro temporário de vacinação contra a covid-19 em Bolton, no noroeste da Inglaterra, em 14 de maio de 2021 (Oli Scarff / AFP) 

O significado do trecho viral

O parágrafo para o qual as postagens alertavam indica que “60 e 70%” dos hospitalizados e falecidos já haviam recebido as duas doses da vacina contra o coronavírus. Esses números são da projeção dos pesquisadores da Universidade de Warwick, como o próprio relatório explica.

No parágrafo 56, os autores assinalam: “A maioria das mortes e as internações em caso de um ressurgimento pós-flexibilização do confinamento são daqueles que receberam as duas doses da vacina, mesmo sem que haja uma queda na proteção vacinal ou que surja uma variante que não responda às vacinas”.

A razão desses cálculos é estatística. Os pesquisadores partem do princípio de que, entre os cidadãos com 50 anos ou mais, a população de maior risco da covid-19, 95% teriam sido vacinados com as duas doses até o momento do possível aumento das hospitalizações no verão boreal. Considerando que as vacinas têm uma eficácia média de 90%, dos vacinados com 50 anos ou mais (aqueles 95%), 9,5% estariam em risco. Esse percentual não estaria “protegido contra a morte” apesar da dupla vacinação, o que resultaria em hospitalizações.

Os 5% da população na mesma faixa etária que ainda não tiverem sido vacinados estariam expostos ao mesmo risco de hospitalização ou morte pela covid-19.

O resumo insiste que “isso não é resultado da ineficácia das vacinas, mas do alto nível de vacinados” entre a população de maior risco.

As projeções das três universidades avançam em seu ponto 31, dando uma série de explicações para a possível terceira onda, apesar do sucesso da campanha de vacinação britânica: até a data de publicação deste artigo, mais de 21 milhões de pessoas haviam recebido as duas doses. 

O texto científico ainda explica: “O aumento [de casos] é resultado de algumas pessoas (na maioria crianças) não poderem ser vacinadas, outras optarem por não receber a vacina, e outras terem sido vacinadas mas não perfeitamente protegidas (incluindo aquelas que receberam apenas uma dose, ao invés de duas)”.

Apesar de tudo, os cenários propostos pelas três universidades dependem de fatores difíceis de prever, como a taxa de contágio em cada nova etapa da flexibilização do confinamento ou a velocidade da campanha de vacinação, como o próprio relatório explica em sua primeira página.

Uma redução na imunidade ou o surgimento de novas variantes resistentes à vacina também devem ser levadas em consideração. Os autores do informe recordam: “Manter as medidas básicas para reduzir a transmissão uma vez suspensas as restrições terá o efeito quase certo de salvar muitas vidas e minimizar a ameaça à capacidade hospitalar”.

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