Dados britânicos não provam que vacinas anticovid destroem o sistema imunológico ou causam aids
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- Publicado em 25 de outubro de 2021 às 00:03
- Atualizado em 27 de outubro de 2021 às 00:08
- 9 minutos de leitura
- Por Juliette MANSOUR, AFP França, AFP Brasil
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“Os dados disponibilizados pelo governo britânico mostram que os vacinados em dose dupla estão desenvolvendo a síndrome da imunodeficiência adquirida. Pessoas de 40 a 69 anos que receberam a dose dupla já perderam 40% da função do sistema imunológico”, sugere o artigo do site Stylo Urbano publicado em 14 de outubro passado.
"De acordo com relatórios oficiais do Reino Unido, os totalmente vacinados estão desenvolvendo síndrome de imunodeficiência adquirida ... no resumo além de não ter eficiência, ela progressivamente danificam o sist. Imunológico", afirma uma das publicações no Twitter (1, 2) e no Facebook (1, 2, 3), que compartilham o texto ou citam seus dados.
Afirmação semelhante também circulou em francês e inglês.
Uma busca em motores da internet revela que o artigo ⎼ compartilhado mais de 299 vezes no Facebook, de acordo com a ferramenta CrowdTangle ⎼ foi originalmente distribuído em inglês em 10 de outubro no site The Exposé UK, já verificado pela AFP em várias ocasiões por disseminar informações falsas sobre a vacinação contra a covid (1, 2).
Relatórios oficiais do Reino Unido
De acordo com o artigo viralizado, a informação sobre uma suposta deterioração do sistema imunológico e posterior desenvolvimento de aids nos vacinados contra a covid-19 vem de uma "comparação de relatórios oficiais do governo britânico", especificamente com documentos da Public Health England (PHE), as autoridades sanitárias inglesas.
O texto anexa os links para os relatórios semanais de monitoramento das vacinas contra a covid-19 em relação às semanas 36, 37, 38, 39 e 40 do ano de 2021, que abrange o período de 6 de setembro a 10 de outubro. Nesses documentos, as tabelas indicam o "número de casos covid-19 classificados pelo status de vacinação", que são listados por faixa etária.
Assim, é possível ver a proporção de pessoas infectadas com o vírus que já receberam uma dose de imunizante; de pessoas vacinadas com as duas doses, que apresentam esquema de vacinação completo (mais de 14 dias após a segunda aplicação), e das que não foram vacinadas na Inglaterra, como na tabela abaixo, para a semana 37.
O artigo viral exibe esses números, mas adiciona à direita de cada uma dessas tabelas duas colunas que não estão nos documentos oficiais, conforme mostrado abaixo para a semana 37. A primeira coluna é intitulada "Estimulação ou degradação do sistema imunológico % (U-V )/U quando positivo (fórmula da Pfizer) (U-V)/V quando negativo". A segunda coluna chama-se "Declínio ou aumento semanal" .
Os resultados semanais da coluna "declínio ou aumento semanal" foram anexados a uma grande tabela, na captura de tela abaixo, que afirma deduzir o "número de semanas que faltam para a destruição total do sistema imunológico (degradação de 100%)" dos vacinados, classificado por faixa etária.
A publicação diz que faltariam apenas 9 semanas para a degradação total do sistema imunológico em pessoas de 40 a 49 anos, e 15 semanas para vacinados de 50 a 59 anos.
Interpretação errada dos dados
"Este artigo é falso", informou a Public Health England à equipe de checagem da AFP em 20 de outubro, em referência à versão original em inglês da publicação viralizada. O site The Exposé UK não explica o significado das categorias agregadas, nem a origem dos percentuais obtidos que não aparecem nos relatórios originais.
Uma busca por palavra-chave direcionada nos cinco relatórios citados não apresenta nenhum resultado para "immune system”, “sistema imunológico” em português. Os estudos de vigilância da vacina também não mencionam a "degradação do sistema imunológico das pessoas vacinadas". Pelo contrário, concluem que as vacinas são eficazes contra as formas graves de covid-19.
No relatório da semana 37, por exemplo, a Public Health England aponta que a taxa de mortes e hospitalizações registrada em um intervalo entre 28 e 60 dias após um teste de covid positivo "aumenta com a idade" e é "significativamente maior em não vacinados do que em pessoas totalmente vacinadas”.
As autoridades sanitárias inglesas também recordam que, “mesmo com uma vacina de alta eficácia, espera-se que ocorra uma elevada proporção de casos, hospitalizações e óbitos em pessoas vacinadas, simplesmente porque uma proporção maior da população está vacinada do que não vacinada e nenhuma vacina é 100% eficaz”.
O documento acrescenta que “isso é especialmente verdadeiro porque a vacinação foi priorizada em indivíduos mais suscetíveis ou com maior risco de doença grave. Indivíduos em grupos de risco também podem apresentar maior risco de hospitalização ou morte devido a causas não covid-19 e, portanto, podem ser hospitalizados ou morrer com covid-19, e não por causa da covid-19”.
Os relatórios das autoridades de saúde inglesas, citados como fontes para as publicações virais, também não mencionam qualquer risco de que a vacinação contra a covid-19 acabe por causar a síndrome da imunodeficiência adquirida, conhecida como aids.
Os termos "Síndrome de Imunodeficiência Adquirida” ou “aids” não aparecem uma única vez nos relatórios de vigilância das vacinas citadas.
A aids é uma doença causada pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), que destrói o sistema imunológico. Porém, a vacinação contra o vírus SARS-CoV-2, que provoca a covid-19, realizada por via intramuscular com equipamentos devidamente esterilizados, não permite a transmissão do HIV.
Usuários nas redes também afirmam que na transmissão ao vivo do presidente Jair Bolsonaro ⎼ retirada do ar pelas plataformas Facebook, Instagram e pelo e YouTube ⎼ foi utilizada uma matéria da revista Exame como fonte dessas informações. Mas, a reportagem, publicada em outubro de 2020, não trata sobre os relatórios britânicos mencionados pelo mandatário.
O texto informa sobre uma carta publicada na revista The Lancet, na qual pesquisadores alertaram para um possível risco de algumas vacinas contra a covid-19. Isso porque, segundo eles, certos imunizantes que utilizam um adenovírus pareceram aumentar a possibilidade de infecção por HIV, apenas em pessoas que tivessem contato com o vírus, de acordo com um estudo de uma vacina contra a aids.
Ao Checamos, Susan Buchbinder, diretora de Pesquisa de Prevenção ao HIV no Departamento de Saúde Pública de San Francisco e uma das autoras da carta da enviada à Lancet, afirmou que esse “é apenas um risco teórico” e que ela e os colegas não foram “capazes de encontrar o mecanismo exato pelo qual isso ocorreu”.
“Nossa recomendação se aplica apenas às vacinas Ad5 (como Sputnik V e CanSinoBio), e é apenas um risco teórico de que se uma pessoa recebesse essa vacina e depois fosse exposta ao HIV, ela poderia ter o risco de infecção pelo HIV aumentado. Isso não se aplica à grande maioria das vacinas que estão sendo usadas internacionalmente”, conclui.
"Sem impacto na imunidade natural"
Afirmar que as vacinas anticovid podem destruir o sistema imunológico não se baseia em nenhuma evidência científica e "não faz sentido", explicaram especialistas entrevistados pela AFP. Pelo contrário, as vacinas contra a covid-19 autorizadas até o momento estimulam o sistema imunológico a induzir proteção contra o vírus causador da covid-19, mesmo que utilizem diversas técnicas para isso (vacinas de RNA mensageiro ou de vetor viral).
“As vacinas não têm impacto sobre a imunidade natural”, já havia enfatizado em março de 2021, à AFP, o professor de imunopatologia Michel Moutschen, porque os imunizantes contam com o sistema imunológico para complementar a imunidade inata com a imunidade adquirida, conforme explica nesse documento do Centro Regional de Prevenção da aids e saúde juvenil (Crisp) de Île-de-France, na França.
Por essa razão, "não há como a vacinação enfraquecer o sistema imunológico", afirmou o imunologista Srđa Janković, e menos ainda que o "destrua" a longo prazo, acrescentou Maja Stanojevic, virologista do Instituto de Microbiologia e Imunologia de Belgrado e consultora da Organização Mundial da Saúde à AFP em dezembro de 2020.
A especialista destacou que “não há procedimento médico sem risco” e que sempre existe “certo risco de consequências não desejadas para qualquer vacina, mas, considerando o nível geral da população e o número de pessoas vacinadas, esse risco é significativamente pequeno”.
A segurança das vacinas é controlada de perto pela OMS e pela Agência Europeia de Medicamentos. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também monitora os imunizantes contra a covid-19.
Até 22 de outubro de 2021, foram administradas 266 milhões de doses de vacinas no Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, e não foram registrados casos de imunizados cujo sistema imunitário tenha sido "destruído". As vacinas atualmente aplicadas no Brasil, aprovadas pela Anvisa, são Pfizer, CoronaVac, Janssen e AstraZeneca.
Embora muito raras, condições mais graves têm sido associadas à AstraZeneca (trombose), às vacinas de RNA mensageiro (pericardite e miocardite) ou à Janssen (síndrome de Guillain-Barré). A maioria dos efeitos colaterais das vacinas anticovid são leves (dor no local da injeção e febre, por exemplo).
A Agência Europeia de Medicamentos (EMA) concluiu em um parecer de 9 de julho que "os benefícios das vacinas da covid-19 autorizadas continuam a superar seus riscos, dado o risco da doença da covid-19, as complicações associadas, e o fato de as evidências científicas mostrarem que elas reduzem as mortes e hospitalizações por covid ”.
Conteúdo semelhante também foi verificado pelo Aos Fatos e Fato ou Fake.
*Esta verificação foi realizada com base em informações científicas e oficiais sobre o novo coronavírus disponíveis na data desta publicação.
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