Discurso anti-imigração é falsamente atribuído à ex-primeira-ministra da Austrália Julia Gillard

Não há registros de que a ex-primeira-ministra australiana Julia Gillard tenha declarado que migrantes muçulmanos deveriam “deixar a Austrália” se desejassem viver sob a lei islâmica Sharia, ao contrário do que alegam publicações que somam mais de 16 mil interações nas redes sociais desde 4 de abril de 2025. Transcrições oficiais de discursos feitos por Gillard, que deixou o cargo em 2013, não exibem conteúdos similares. As supostas declarações, que já circularam atribuídas a outros líderes australianos, misturam falas de políticos do país e frases de um editorial norte-americano.

“A BRILHANTE RAINHA DO MUNDO. A primeira-ministra australiana, Julia Gillard, deveria se tornar Rainha do Mundo.  O que ela disse requer muita coragem e confiança. Todos os países do mundo deveriam ter líderes como ela”, inicia uma das publicações compartilhadas no Facebook, no Instagram e no X.

A mensagem continua: “‘Os muçulmanos que exigem a lei Sharia foram convidados a deixar a Austrália até quarta-feira, pois a Austrália considera os muçulmanos fanáticos como terroristas. Todas as mesquitas serão registradas e os muçulmanos cooperarão conosco neste processo. (...) Se eles não puderem fazer isso, preferimos que deixem a Austrália”.

O conteúdo, que também circulou em inglês em 2024, foi encaminhado ao WhatsApp do AFP Checamos, para onde os usuários podem enviar mensagens vistas em redes sociais, caso duvidem de sua veracidade.

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Captura de tela feita em 24 de abril de 2025 de uma publicação no Facebook (.)

O texto viralizado compartilha uma fotografia de Julia Gillard, que ocupou o cargo de primeira-ministra da Austrália de 2010 a 2013, e atribui a ela declarações de que os imigrantes muçulmanos no país deveriam aprender a falar inglês e não ler o Alcorão em voz alta.

Mas não há registro de que Gillard tenha expressado opiniões desse teor durante seu mandato como primeira-ministra.

Transcrições de discursos

Uma pesquisa pelo termo “Sharia” no site “PM Transcripts” — um portal do governo australiano que documenta discursos feitos pelos primeiros-ministros do país — encontrou uma entrevista com Gillard feita em 20 de julho de 2011.

Conforme a transcrição, a referência à lei islâmica foi feita após a pergunta de um jornalista sobre um “caso da lei Sharia em Sidney” — uma referência a um incidente ocorrido em julho de 2011, quando um homem convertido ao islamismo foi açoitado 40 vezes na capital australiana como uma punição por beber álcool e usar drogas.

Em resposta, a então primeira-ministra afirmou: “Só há uma lei nesse país, a lei da Austrália. Isso é o que nos une e todos têm que obedecer às leis australianas”.

Uma busca no Google pelas palavras-chave “Julia Gillard”, “Sharia” e “muçulmanos” não encontrou registros de que a ex-primeira-ministra tenha feito as declarações virais ou anunciado que migrantes muçulmanos deveriam deixar o país durante o seu mandato.

Origem das declarações

Uma nova busca no Google, dessa vez pelas frases compartilhadas nas publicações, em inglês, encontrou registros de que formas similares da mesma mensagem já circularam no passado falsamente atribuídas a outros primeiros-ministros da Austrália, como John Howard e Kevin Rudd.

A mesma pesquisa conduziu a declarações parecidas feitas em 19 de março de 2005 pelo então ministro australiano de Finanças, Peter Costello, durante uma entrevista ao programa Lateline. Ele afirmou: “Nossas leis são feitas pelo Parlamento Australiano. Se estes não são seus valores, se você quer um país com a Lei da Sharia ou um estado teocrático, então a Austrália não é para você”.

Uma busca por palavras-chave do texto viral em inglês, como “bandeira”, “religião”, “modo de vida”, “país”, “Deus” e “ofender” encontrou um texto com citações análogas publicado no fórum “Walleye Central” em junho de 2003. A mensagem aparece em diversas publicações norte-americanas que, por sua vez, indicam diferentes autorias.

A mesma busca conduziu a verificações de 2001 que rastreiam a origem das declarações a Barry Loudermilk, veterano da Guerra do Vietnã e congressista republicano pelo estado da Geórgia desde 2015. Intitulado “Isto é a América. Ame-a ou Deixe-a”, o texto teria se tornado uma referência para o conservadorismo após o atentado às Torres Gêmeas em Nova York em 11 de setembro de 2001.

Pesquisando na ferramenta WayBack Machine, é possível encontrar o texto original de Loudermilk, arquivado em fevereiro de 2002 — um editorial publicado na revista norte-americana VietNow.

A publicação inclui falas que remetem ao conteúdo viral, como: “Nós falamos inglês, não espanhol, árabe, chinês, japonês, russo ou qualquer outra língua. Dessa forma, se você quer se tornar um membro da nossa sociedade, aprenda a nossa língua!”.

O veterano também afirma que “quando acabarem de reclamar e choramingar sobre a nossa bandeira, nosso juramento, nosso lema nacional ou nosso modo de vida, os encorajo fortemente a aproveitar outra grande liberdade americana, o direito de ir embora!”.

As falsas declarações atribuídas a Gillard circulam na internet desde pelo menos 2005 e já foram desmentidas por portais como Snopes.

Referências

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