Professor irlandês foi preso por ignorar ordens judiciais, não por se opor à “ideologia de gênero”
- Publicado em 3 de outubro de 2024 às 20:07
- 5 minutos de leitura
- Por Ivan FISCHER, AFP Croácia
- Tradução e adaptação Lucia Diaz , AFP Brasil
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“O Professor Enoch Burke foi detido no Wilson's Hospital School, na Irlanda, após se recusar a apoiar e reconhecer a ideologia de gênero trans. Segundo suas convicções, há apenas dois gêneros: masculino e feminino”, afirmam publicações no Facebook, no Instagram e no Telegram.
A alegação é compartilhada junto a um vídeo do professor conversando com policiais durante uma das ocasiões em que foi preso. “Professor sendo preso por não aceitar transgeneridade”, ouve-se em inglês em determinado momento da gravação.
Conteúdo semelhante circula em espanhol, croata, holandês e grego.
O conceito de “ideologia de gênero” é usado de forma pejorativa por aqueles que se opõem a políticas e medidas que defendem a diversidade sexual e o conceito de identidade de gênero.
Um relatório elaborado por um pesquisador independente das Nações Unidas apontou que esse conceito é frequentemente utilizado “para impedir os direitos relacionados à sexualidade e ao gênero, à educação integral sobre gênero e sexualidade, e os direitos das pessoas LGBT”, especialmente “das pessoas trans e de gênero diverso”.
O Checamos já verificou outros conteúdos relacionados com a suposta “ideologia de gênero” (1, 2, 3).
Preso por desobedecer uma ordem judicial
Uma pesquisa por “Enoch Burke” no Google exibiu notícias (1, 2) sobre a sua terceira detenção, em 2 de setembro de 2024, por se recusar a permanecer fora da escola onde lecionava, a Wilson's Hospital School, localizada em Mullingar, oeste de Dublin.
A AFP encontrou um total de 24 sentenças relacionadas a Enoch Burke arquivadas pelos tribunais irlandeses, proferidas entre dezembro de 2022 e agosto de 2024. Os documentos permitem construir uma sequência de fatos comprovados pelos tribunais, desde quando foi suspenso do instituto até a sua prisão.
Enoch Burke era professor de história e alemão. Em maio de 2022, a escola onde ele trabalhava recebeu um e-mail dos pais de um aluno que pretendia fazer uma “transição social da sua identidade de gênero”, solicitando que o seu filho fosse chamado pelo novo nome e que fosse utilizado o pronome inglês “eles”. A direção se mostrou disposta a aceitar esse pedido, mas Burke se opôs, e afirmou que se tratava de “um abuso das crianças e de seus direitos constitucionais”.
A instituição convidou Burke para uma reunião com o objetivo de encontrar uma solução que levasse em conta tanto “as crenças pessoais de Burke quanto as necessidades do aluno”.
Após diversas conversas com ele, em junho de 2022, Burke interrompeu um evento na capela da escola, onde fez um discurso denunciando o “transgenerismo” e confrontou a direção.
Em agosto de 2022, a escola o suspendeu temporariamente do emprego com uma “licença administrativa remunerada”, enquanto se aguardava o processo disciplinar contra ele. Burke continuou frequentando o seu local de trabalho e, após ignorar repetidamente a ordem judicial de não se aproximar da instituição, em 5 de setembro de 2022 o tribunal ordenou sua prisão, da qual saiu em 21 de dezembro do mesmo ano, conforme consta nesta sentença. Em janeiro de 2023 foi demitido.
Burke voltou à escola em diversas ocasiões e, em agosto de 2023, foi novamente condenado à prisão.
Em 2 de setembro de 2024, Burke foi detido novamente e teve que comparecer ao Tribunal Superior em Mullingar, disse à AFP o porta-voz da polícia irlandesa (Garda Síochána) em 12 de setembro de 2024. O serviço judicial da Irlanda confirmou que Burkle foi preso “por violar uma ordem” de restrição da Wilson's Hospital School.
A sentença não tem relação com as opiniões de Burke
A decisão judicial de dezembro de 2022 confirma que a pena de Burke não teve relação com as suas opiniões sobre a mudança de pronomes ou a transição de gênero. “O cumprimento destas ordens não compromete de forma alguma as crenças religiosas do Sr. Burke nem o obriga a fazer qualquer coisa que viole essas crenças”, observou o juiz. “Essas ordens não obrigavam e não obrigam o senhor Burke a se dirigir a ninguém de uma maneira específica nem a utilizar um estilo ou título específico.”
O documento indica ainda que o professor considera sua sentença uma punição por se recusar a classificar pessoas trans como “eles”, algo que suas crenças religiosas o impediriam de fazer. “Ele se equivoca nisso, uma vez que sua prisão ocorreu devido à sua própria decisão de frequentar a escola sabendo que havia sido ordenado a não fazê-lo”, diz o documento.
Burke poderá sair da prisão se cumprir a ordem judicial
Tom Hickey, jurista irlandês da Dublin City University, disse à AFP em 16 de setembro que ser preso por desacato, como aconteceu com Burke, “não é muito comum” na Irlanda: “Alguém que enfrenta a prisão por algum aspecto de sua conduta - por exemplo, retendo algum documento que o tribunal determina que ele é obrigado a fornecer, ou invadindo propriedades que é obrigado a evitar – cederia [em sua atitude ou conduta], evitando assim a ameaça de prisão”. No entanto, Burke “insiste em comparecer à escola, aparentemente como se se sentisse, de certa forma, obrigado por sua consciência”, disse o especialista.
De fato, Hickey sustentou que o ex-professor poderia sair da prisão quando quisesse. “Poderia evitar a prisão simplesmente prometendo não descumprir a ordem judicial. Basicamente, mantendo-se longe da escola.”
No entanto, a razão para o seu desrespeito às ordens judiciais pode ser a notoriedade, como sugere a decisão de dezembro de 2022: “As suas opiniões sobre as pessoas transgênero são muito mais conhecidas agora (...). “O senhor Burke está explorando a sua prisão para seus próprios fins”, diz o documento.
O caso na mídia
Burke e a sua família têm aparecido frequentemente na mídia irlandesa devido aos numerosos processos judiciais que moveram contra instituições governamentais, seus antigos empregadores e associações profissionais.
Em duas ocasiões eles foram expulsos dos tribunais, uma delas durante o julgamento em que Burke perdeu o recurso contra a ordem do Tribunal Superior que o proibiu de frequentar a Wilson's Hospital School.