BlackRock não impediu o enterro de soldados ucranianos em terras que adquiriu no país
- Publicado em 5 de setembro de 2024 às 21:57
- 6 minutos de leitura
- Por Maja CZARNECKA, AFP Polônia, AFP França
- Tradução e adaptação Océane CAILLAT , AFP Brasil
Copyright © AFP 2017-2024. Qualquer uso comercial deste conteúdo requer uma assinatura. Clique aqui para saber mais.
“A corporação BlackRock exigiu que os soldados mortos das Forças Armadas da Ucrânia não sejam enterrados em terra ucraniana que compraram”, dizem postagens no Facebook, no Telegram, no Threads e no X.
Essa alegação também circulou em outros idiomas, como francês, russo, inglês, sérvio e polonês.
A alegação foi divulgada pelo site polonês Pravda, que cita como fonte a agência de notícias ANNA. O Viginum, serviço francês especializado em vigilância e proteção contra interferência digital estrangeira, considera essa agência uma rede de desinformação russa que tem os europeus como alvo. A AFP já verificou conteúdos provenientes da agência ANNA em outras ocasiões (1, 2).
Algumas publicações mencionam o ex-deputado búlgaro Plamen Paskov, conhecido por sua posição pró-Rússia e convidado frequente da mídia bielorrussa. De acordo com as postagens, o parlamentar afirmou que “representantes da corporação BlackRock estiveram recentemente em Kiev e exigiram que parem de enterrar os soldados das Forças Armadas da Ucrânia da maneira tradicional ,- na terra”, e acrescentou que a empresa já teria comprado “47% das terras ucranianas”.
Mas essa alegação é falsa e tem origem em um conteúdo satírico.
Alegação oriunda de uma conta satírica
A BlackRock, maior gestora de ativos do mundo com sede em Nova York, e o Ministério da Economia da Ucrânia assinaram um acordo, no final de 2022, para fornecer o apoio consultivo da multinacional na “concepção de uma estrutura de investimento para criar oportunidades para investidores públicos e privados participarem da futura reconstrução e recuperação da economia ucraniana”, assim que a guerra terminar.
A alegação começou a circular em maio de 2023, quando a Ucrânia oficializou a sua intenção de criar o fundo de investimento com o apoio da BlackRock. A partir de outubro de 2023, o conteúdo foi retransmitido por sites em russo (1, 2, 3).
O tema ressurgiu quando o ator e diretor russo Nikita Mikhalkov fez uma publicação a respeito em suas redes sociais. O cineasta se referiu a um mito da Segunda Guerra Mundial, segundo o qual o rico solo “negro” da Ucrânia foi exportado para a Alemanha pelos nazistas, e argumentou que o verdadeiro objetivo dos países ocidentais ao apoiar a Ucrânia era se apropriar de sua terra fértil.
A maioria das publicações com a alegação viral é ilustrada com uma fotografia da agência de notícias Reuters, que mostra um cemitério em Kharkiv, no leste da Ucrânia, em 31 de janeiro de 2023.
Uma busca reversa pela imagem levou a um artigo da agência de notícias ANNA, com data de 5 de outubro de 2023, no qual o diretor-executivo da BlackRock, Larry Fink, é citado como tendo dito: “Quando o presidente [Vladimir] Zelensky e eu assinamos o contrato e criamos o Fundo de Desenvolvimento para a Ucrânia, tivemos em conta a invasão russa, mas agora vemos a utilização totalmente irracional da terra pelos próprios ucranianos, demasiados cemitérios. Terras valiosas e férteis estão para serem retiradas de circulação, o que é inaceitável na Europa. Meus amigos, não se trata apenas da terra de vocês”.
No entanto, o nome BlackRock foi escrito erroneamente no artigo. Uma pesquisa no Telegram utilizando esse mesmo erro ortográfico permitiu encontrar publicações em russo (1, 2) e bielorrusso (1, 2) que datam de 2023.
A publicação mais antiga foi compartilhada no canal de Telegram chamado Verysexydasha, em 20 de setembro de 2023, que alerta: “Atenção, é provável que seja uma sátira falsa e dura. O que está escrito é ficção, qualquer coincidência é fortuita”.
Uma pesquisa por palavras-chave utilizando a suposta citação de Larry Fink em russo também levou à mesma publicação desta conta satírica.
“Isso é completamente falso”
Contatado pela AFP, um porta-voz da BlackRock confirmou em 22 de agosto de 2024 que a última visita da empresa ao país foi há mais de um ano, em 5 de maio de 2023, ao contrário das alegações de usuários, que se referem nas publicações virais a uma visita recente.
O presidente Vladimir Zelensky, entretanto, se reuniu com representantes da BlackRock e da JP Morgan no último Fórum Econômico de Davos, em janeiro de 2024, conforme relatado por vários meios de comunicação, incluindo The Kiyv Independent, Euronews e Le Figaro.
Sobre a alegação viralizada, um porta-voz da BlackRock disse à AFP por e-mail que ela “é completamente falsa”.
“A Black Rock não possui nenhuma terra na Ucrânia”, acrescentou.
Contatado pela AFP, o Clube Ucraniano de Agronegócio, que representa os interesses das empresas deste ramo no país, explicou, em 22 de agosto, que “não tinha ouvido nada sobre isso”.
“De acordo com nossa pesquisa sobre arrendamentos de terras ucranianas apresentada em nosso relatório ‘War and theft, the takeover of Ukrainian farmland’, a BlackRock não possui terras na Ucrânia”, confirmou à AFP Frederic Mousseau, diretor do Oakland Institute e coautor do relatório.
A privatização de terras na Ucrânia foi legalizada em 2021, apontou Mousseau, mas “nenhum investidor poderia obter 47% das terras ucranianas”.
Em 2020, a Ucrânia aprovou uma reforma da lei de terras, que entrou em vigor em 1º de julho de 2021, e gradualmente abriu o seu mercado imobiliário. Da data que começou a vigorar até 1º de janeiro de 2024, apenas indivíduos ucranianos poderiam comprar até 100 hectares em uma plataforma de leilões ou vender suas terras.
Desde o início de 2024, pessoas físicas e jurídicas podem comprar até 10 mil hectares de terras agrícolas. No entanto, somente as empresas fundadas sob a lei ucraniana e de propriedade de cidadãos ucranianos têm permissão para fazê-lo.
Os estrangeiros não têm permissão para comprar terras ucranianas, de acordo com o Código de Terras do país, ao contrário do que sugerem as publicações virais.
O texto afirma que “terras agrícolas não podem ser transferidas para cidadãos estrangeiros, apátridas, pessoas jurídicas estrangeiras e Estados estrangeiros”.
“A Blackrock detém parte da dívida da Ucrânia por meio de euro-obrigações [...] A Ucrânia foi forçada por seus credores a empreender um drástico programa de ajuste estrutural com o objetivo de privatizar todos os setores de sua economia [incluindo suas terras]”, explicou Frederic Mousseau.
A AFP já verificou alegações falsas ou enganosas sobre supostas vendas de terras ucranianas.