Zelensky não vendeu milhões de hectares de terras ucranianas para empresas estrangeiras

A venda de terras agrícolas a investidores estrangeiros é proibida por lei na Ucrânia. No entanto, desde agosto de 2022, dezenas de publicações em português compartilhadas nas redes sociais afirmam que o presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, vendeu quase 17 milhões de hectares de terras cultiváveis em seu país para companhias no exterior. Especialistas explicaram à AFP por que essas declarações são falsas e contrariam a lei, e as empresas citadas negaram a suposta compra.

“Falta saber qual a utilidade desses hectares. EUA não gostam de plantar milho. Zelensky vendeu 17 milhões de hectares de terras agrícolas na #Ucrânia para Dupont Cargill e Monsanto com grande participação de Black Rock Blackstone e Vanguard”, dizem publicações compartilhadas no Twitter e Facebook.

O conteúdo também circulou em espanhol, francês, inglês e polonês.

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Captura de tela feita em 15 de outubro de 2022 de uma publicação no Facebook ( .)

Lei na Ucrânia não permite venda de terras para empresas estrangeiras

De acordo com informações do Banco Mundial, em 2020 a Ucrânia tinha 41 milhões de hectares de terras cultiváveis, enquanto a área do país como um todo é de 58 milhões de hectares.

Em 1º de julho de 2021, entrou em vigor uma reforma na lei de terras ucranianas proibindo a venda de terras agrícolas a indivíduos e empresas estrangeiras.

De acordo com o artigo 130 da nova legislação, as terras agrícolas podem ser compradas apenas por cidadãos ucranianos, autoridades locais ou pelo Estado ucraniano. As empresas, por sua vez, só podem adquirir essas terras se estiverem registradas sob a lei ucraniana e forem de propriedade exclusiva de cidadãos ucranianos.

Oleksij Martinietz, especialista em Direito Agrário da Associação Ucraniana de Empresas Agrícolas (UCAB), disse à AFP por e-mail que as publicações que circulam nas redes sociais são "absolutamente absurdas": "Estrangeiros não podem possuir [terras ucranianas]", escreveu, explicando que, pela lei atual, até os herdeiros têm limitações. “Os herdeiros estrangeiros podem tomar posse da terra por um período de um ano e depois têm que vendê-la”, disse.

O especialista detalhou que empresas estrangeiras podem cultivar terras na Ucrânia em regime de arrendamento. "Atualmente, 2,5 milhões de hectares de terras agrícolas pertencentes a cidadãos ucranianos são arrendados dessa maneira", indicou. “Isso é muito menos do que os 17 milhões de hectares declarados nas publicações”.

De acordo com um relatório de novembro de 2021 da organização independente Land Matrix, a área total de interesse dos investidores estrangeiros na Ucrânia é de 3,3 milhões de hectares.

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Campos de lavanda na Ucrânia em julho de 2011 ( AFP / Sergei Supinsky)

Empresas envolvidas negam os rumores

As três empresas estrangeiras mencionadas nas publicações virais – Monsanto, DuPont e Cargill – negaram à AFP que tenham comprado terras na Ucrânia.

A Monsanto, empresa norte-americana de biotecnologia, química orgânica e produtora de sementes, mencionada nas publicações, foi adquirida pela companhia farmacêutica e química Bayer, de origem alemã, em 2018.

Utz Klages, porta-voz da divisão de pesquisa agrícola da Bayer, escreveu em um e-mail à AFP, em 17 de agosto de 2022, que a empresa não possui nenhuma terra agrícola no país. "Até o momento, não há possibilidade de estrangeiros ou empresas estrangeiras adquirirem terras agrícolas na Ucrânia", assinalou.

Os últimos relatórios anuais da Cargill, DuPont e Bayer também não mencionam a aquisição ou propriedade de terras agrícolas na Ucrânia.

As três empresas mencionadas estão ativas no mercado ucraniano, mas têm a função de fornecer sementes ou produtos fitossanitários e comercializar cereais, disse à AFP Oleksij Martinietz, da UCAB.

A AFP também consultou o Ministério da Agricultura da Ucrânia e o Serviço Estatal de Geodésia e Cartografia do país, mas não teve retorno dessas instituições até a publicação deste artigo.

Australian National Review “corrige” seu artigo

Algumas publicações que circulam nas redes sociais creditam a informação a um texto do site Australian National Review (ANR) de 27 de maio de 2022. O veículo, que já compartilhou desinformação e teorias da conspiração verificadas pela AFP em espanhol (1, 2, 3), se descreve como "a primeira imprensa livre e independente da Austrália".

A AFP entrou em contato com o site solicitando as fontes de informação sobre a suposta venda de terras agrícolas ucranianas a empresas estrangeiras, mas não recebeu uma resposta até a publicação desta verificação.

Em agosto de 2022, o artigo publicado pelo site australiano foi atualizado com a seguinte nota editorial: "Os 17 milhões de hectares mencionados foram um erro; são 1,7 milhão de hectares, mas através de fundos de investimento". Contudo, o portal novamente não informa a fonte ou apresenta documentos ou evidências sobre a alegação.

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