Collor não disse que governos utilizam projeto HAARP, dos EUA, para gerar desastres climáticos

  • Publicado em 14 de maio de 2024 às 21:41
  • 6 minutos de leitura
  • Por AFP Brasil
Desde o fim de abril de 2024, o Rio Grande do Sul sofre uma tragédia climática em mais de 440 municípios que já afetou mais de 2,1 milhões de pessoas. Nesse contexto, um vídeo visualizado mais de 127 mil vezes nas redes sociais alega que o ex-presidente Fernando Collor de Mello teria exposto o uso do projeto norte-americano HAARP por governos para a indução desse tipo de desastre. Mas isso é falso: Collor lia um comentário de um internauta durante uma comissão parlamentar em 2017, e especialistas explicaram à AFP que o HAARP não é capaz de causar eventos como o que afeta o estado gaúcho.

“HAARP - O próprio governo induz desastres naturais com este aparato tecnológico, com o objetivo de controle e redução populacional. Não existe mudança climática. Fernando Collor de Mello, presidente à época, trouxe essa verdade à tona”, diz uma das publicações compartilhadas no Facebook.

O conteúdo também circula no Instagram, no Threads, no X, no Telegram e no YouTube.

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Captura de tela feita em 8 de maio de 2024 de uma publicação no X (.)

Na sequência viral, um homem exibe um vídeo em que o ex-presidente Fernando Collor de Mello parece fazer um pronunciamento, dizendo: “O HAARP, sigla para Projeto de Pesquisas em Auroras de Alta Atividade, está patenteado nos Estados Unidos sob o nº 4.686.605 e descrito como aparato físico para mudanças climáticas. É capaz de gerar terremotos, tornados e furacões como o Harley”.

Em seguida, o homem, identificado em algumas publicações como o influenciador Rômulo Maraschin, mostra a suposta patente norte-americana mencionada por Collor e imagens de instalações do HAARP, afirmando que “é isso que causa as mudanças climáticas”.

Diversas publicações que compartilham o conteúdo viral associam-no às tragédias vividas pelo Rio Grande do Sul desde o fim de abril de 2024, sugerindo que o equipamento seria responsável pelos eventos climáticos. Até o momento desta publicação, fortes chuvas já afetaram mais de 2,1 milhões de pessoas, deixando mais de 145 mortos e 538 mil deslocados.

Entretanto, Collor, na verdade, está lendo uma mensagem de um internauta e não aparece no vídeo “trazendo a verdade do HAARP à tona”, em referência a uma teoria da conspiração já desmentida por especialistas.

Vídeo de 2017

Nas imagens, é possível notar que uma tarja com os dizeres “Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional” acompanha o discurso de Fernando Collor.

Uma pesquisa por essas palavras-chave conduziu a um vídeo publicado no canal do ex-presidente no YouTube em 5 de setembro de 2017, intitulado “11ª Reunião conjunta da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional CRE 04 09 2017”. 

A gravação foi feita em 4 de setembro de 2017 durante a 11ª sessão da comissão no Senado, presidida por Collor de 2017 a 2018. No painel, que foi transmitido na íntegra no canal da TV Senado no YouTube, os parlamentares discutiram a situação do Mercosul e o futuro do bloco econômico.

O trecho exibido no conteúdo viralizado foi retirado de uma sessão em que o presidente da comissão lia perguntas enviadas pela internet aos debatedores. Com 1 hora e 34 segundos de transmissão, Collor afirma: “Bom, e do Sérgio Luiz Peixoto, de São Paulo, ele nos traz aqui algo que eu nunca ouvi falar. Acredito que também alguns não tenham ouvido falar, mas pelo sim, pelo não, já que a pergunta foi feita, passo a lê-la”.

Ao final da mensagem, ele diz: “Fica aqui a leitura dessa consideração feita por Sérgio Luiz Peixoto, de São Paulo, em respeito aos nossos internautas. Se alguém souber do paradeiro desse projeto de pesquisa, por favor, que nos esclareça”.

O projeto HAARP

O projeto mencionado no vídeo viral, chamado High Frequency Active Auroral Research Program (HAARP), é uma pesquisa da Universidade de Alaska Fairbanks (UAF) acerca da ionosfera, uma camada da atmosfera terrestre localizada a partir de 60 a 80 quilômetros de altitude e que se estende por 500 quilômetros.

Os experimentos são feitos utilizando 180 antenas dispostas em 33 hectares — cerca de 33 campos de futebol — no Alasca. Os instrumentos transmitem ondas de rádio para aquecer elétrons na ionosfera, provocando “pequenos distúrbios semelhantes às interações que ocorrem na natureza”, conforme é estabelecido na página do programa da UAF.

Contudo, os efeitos provocados são de curto prazo e alcance limitado. A AFP já verificou diversas alegações que utilizam o HAARP como alvo de desinformação em temas como desastres naturais e problemas de saúde.

A diretora do programa, Jessica Matthews, afirmou à AFP, em 11 de fevereiro de 2023, que “a equipe de pesquisa do HAARP não pode criar ou aumentar esses desastres naturais”.

À época, o professor de Astronomia da Universidade de Boston Jeffrey Hughes explicou que as ondas de rádio usadas pelo HAARP atingem uma área máxima de 100 quilômetros. “Não há como elas serem usadas para causar um efeito do outro lado do planeta em terra firme. Desculpe-me, mas é meio bobo", disse ele à AFP.

Patente expirada para "modificação do clima"

O vídeo viral também cita a patente de um aparelho que aqueceria partes da ionosfera para propósitos de defesa, alegando que isso seria uma prova de que o equipamento estaria sendo usado pelo governo norte-americano.

Conforme já explicado pela AFP em uma verificação de 2022, o documento, arquivado em 1985 em meio à Guerra Fria, indica que, além de interromper as comunicações inimigas, a tecnologia poderia ser usada para a “destruição, deflexão ou confusão de mísseis e aeronaves” ou para a “modificação do tempo”.

O registro, disponível no Google Patents, sinaliza que o aparelho foi inventado por Bernard J. Eastlund, um físico norte-americano reconhecido por uma invenção relacionada à fusão nuclear. A patente foi concedida em 1987 e posteriormente adquirida pela empresa de defesa britânica BAE Systems.

A empresa se recusou a comentar sobre a patente, mas indicou que ela já havia expirado. Um porta-voz encaminhou a AFP ao Departamento de Defesa dos Estados Unidos, mas não houve resposta.

Não há evidência de que a tecnologia descrita na patente tenha sido desenvolvida.

David Keith, professor de Física e coordenador de um grupo de pesquisa sobre geoengenharia solar na Universidade de Harvard, disse à AFP em 1º de dezembro de 2022 que não é possível modificar o tempo utilizando o aparelho descrito na patente.

“O HAARP e os conceitos na patente norte-americana 4686605 não são utilizados para alterar o tempo, e eles seriam efetivamente inúteis para esse propósito”,  afirmou.

Carlos Nobre, meteorologista e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT), explicou à AFP em 9 de maio de 2024 que as alegações a respeito do uso do HAARP para causar desastres climáticos são “totalmente sem sentido”

“A energia desse sistema de medidas no Alasca para medir fisicamente as ondas eletromagnéticas da ionosfera é ridiculamente pequena e não poderia alterar nem mesmo o clima no Alasca”, completou.

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