Alegações que ligam o terremoto da Turquia e Síria ao programa “HAARP” não têm base científica
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- Publicado em 22 de fevereiro de 2023 às 20:48
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- Por Paula CABESCU, AFP Romênia, AFP Brasil
- Tradução e adaptação Natalia SANGUINO
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“Projeto Haarp a Arma Climática De Destruição Em Massa!”, diz esta postagem no Facebook ilustrada por um vídeo de clarões de luz no céu que teriam sido gravados na Turquia antes do terremoto.
Usuários também vinculam o terremoto ao programa mencionado, sem adicionar imagens do tremor. Alegações ou insinuações de que o abalo sísmico que atingiu a Turquia e a Síria estaria relacionado ao HAARP também circulam no Twitter.
Mensagens com o mesmo sentido foram compartilhadas em espanhol, romeno, francês, holandês e húngaro.
Mais de 47.000 pessoas morreram como consequência do terremoto nos dois países até 22 de fevereiro e centenas de milhares estão desabrigadas. As autoridades turcas e sírias estão tentando lidar com o desastre humanitário causado pela catástrofe natural. O Checamos já verificou desinformações relacionadas ao terremoto (1, 2, 3).
O que é HAARP e por que não poderia causar o terremoto
O High Frequency Active Auroral Research Program, conhecido como HAARP, é um projeto da Universidade de Alaska Fairbanks (UAF) para o estudo da ionosfera, uma camada da atmosfera terrestre que começa a cerca de 60 a 80 quilômetros de altitude e se estende por 500 quilômetros.
A pesquisa é realizada através de um conjunto de 180 antenas implantadas em 33 hectares.
O projeto é alvo recorrente de desinformação e a AFP já verificou conteúdos que o associavam erroneamente a mudanças no clima, problemas de saúde, ou à tecnologia 5G.
O HAARP foi fundado em 1990 como uma iniciativa do Congresso dos Estados Unidos "para ampliar o conhecimento dos efeitos dessa parte da atmosfera na propagação de ondas de rádio, a fim de melhorar os sistemas de comunicação e vigilância para fins civis e de defesa", segundo a página do programa. Entre 1990 e 2014, foi administrado conjuntamente pela Força Aérea e Marinha dos Estados Unidos. Agora não há militares trabalhando nas pesquisas do programa, conforme informado em seu site.
O projeto usa ondas de rádio para aquecer elétrons na ionosfera, criando "pequenos distúrbios semelhantes às interações que ocorrem na natureza", mas que são mais fáceis de serem estudados pelos cientistas, conforme explicado na página do projeto, que agora depende da Universidade do Alasca Fairbanks (UAF).
“A equipe de pesquisa do HAARP não pode criar ou aumentar esses desastres naturais”, disse à AFP a diretora-gerente do programa, Jessica Matthews, em 11 de fevereiro de 2023.
Segundo especialistas em Astronomia, Geofísica e Ciências da Terra consultados pela AFP em 8 de fevereiro de 2023, a tecnologia desenvolvida pelo HAARP não tem capacidade de causar tremores de terra, e as luzes que aparecem em algumas publicações são produzidas por um fenômeno registrado em outras ocasiões quando ocorre um terremoto.
O professor de astronomia da Universidade de Boston, Jeffrey Hughes, explicou à AFP que as ondas de rádio usadas pelo HAARP atingem uma área máxima de 100 quilômetros. “Não há como eles serem usados para causar um efeito do outro lado do planeta em terra firme. Me desculpe, mas é meio bobo", disse ele.
O geofísico Toshi Nishimura, professor associado da Escola de Engenharia da Universidade de Boston, concordou com Hugues:
“Ondas de rádio artificiais podem afetar localmente a atmosfera superior, mas é comparável ao que o sol faz. Não tenho conhecimento de nenhuma evidência científica de que essas ondas artificiais possam criar distúrbios maiores e afetar o impacto de tremores sísmicos em um ponto. O poder dessas ondas diminui à medida que você se afasta", disse ele.
O tremor provocado pelos terremotos é causado por movimentos na camada mais externa da Terra, a crosta, explica a NASA.
As placas tectônicas fazem com que a crosta terrestre esteja em constante movimento. Quando as bordas das placas colidem umas com as outras, o atrito libera energia reprimida na forma de ondas sísmicas. Esse processo não tem nada a ver com a ionosfera, que é o que o programa HAARP investiga.
"É tão louco quanto perguntar se o terremoto foi causado pelo Pernalonga cavando em busca de cenouras", disse à AFP David Keith, professor de física aplicada na Harvard School of Engineering and Applied Sciences.
A geofísica Susan Hough, do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS), chamou as alegações virais de "ficção científica". "Não existe um mecanismo plausível pelo qual um terremoto possa ser acionado com um dispositivo como esse."
O programa "não é uma arma"
Algumas publicações também afirmam que o projeto de pesquisa é uma “arma para intimidar e aterrorizar a população”.
O programa HAARP "não é uma arma de forma alguma e nunca foi e nunca será usado como uma arma", disse Michael Lockwood, professor de física ambiental espacial da Universidade de Reading em Berkshire, Inglaterra. Lockwood trabalhou com instrumentos científicos semelhantes ao HAARP e observou que o interesse militar nessa tecnologia é para "fins de comunicação, não para uso como arma".
Lockwood considerou que as teorias da conspiração sobre o uso do HAARP como arma podem decorrer do fato de que o projeto inicialmente investigou o uso de ondas de rádio para comunicações com submarinos, especialmente aqueles que carregam armas nucleares. “Com a queda da União Soviética, as comunicações subaquáticas não pareciam mais cruciais”, disse ele, então o HAARP precisava de um novo propósito, como este artigo relata.
As luzes do terremoto
Algumas das publicações viralizadas em vários idiomas relacionam o HAARP ao terremoto pelo fato de, supostamente, luzes terem aparecido no céu da Turquia pouco antes do sismo.
No entanto, uma busca reversa por capturas de tela do vídeo que mostra essas luzes levou a um tuíte publicado em 6 de fevereiro, dia do desastre, citando outro usuário como fonte das imagens, mas nenhum referindo-se ao programa HAARP. A equipe de verificação da AFP não conseguiu encontrar a filmagem original e não pôde confirmar se foi ou não gravada antes do terremoto na Turquia em 2023.
Segundo os especialistas consultados, as luzes vistas no vídeo não provam que o HAARP tenha causado o tremor, sendo um fenômeno relativamente comum em terremotos. Entre as fontes científicas, no entanto, não há uma resposta única para o porquê dessas luzes serem vistas.
O Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS) fala aqui de "luzes sísmicas", semelhantes a raios, bolas de luz ou brilhos, que foram associadas a terremotos.
A geofísica da USGS, Hough, explicou que "a maioria" dos especialistas concorda que existem luzes sísmicas. “Clarões de luz foram vistos em grandes terremotos. Às vezes, as luzes são causadas por explosões de transformadores, mas há evidências de clarões de luz produzidos pela própria Terra", disse ele.
“Existem várias ideias sobre por que [essas luzes] ocorrem, mas não acho que haja uma teoria amplamente aceita para explicá-las, em parte porque foram observadas de maneira efêmera e são difíceis de documentar”, acrescentou.
O professor Hugues, por sua vez, disse não saber "o que causa os clarões do vídeo" viral, mas considerou que "alguns deles se parecem com os tipos de luzes que ocorrem quando os sistemas de energia elétrica têm um curto-circuito, o que certamente ocorreu durante a destruição do terremoto”.
Em algumas publicações que vinculam o desastre natural ao HAARP, os usuários citam um suposto abandono da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) pela Turquia, que, até a data de publicação deste artigo, não foi confirmado. O país continua entre os membros da organização.
A Turquia está entre duas falhas continentais, onde os terremotos não são incomuns. "Tudo indica que o terremoto na Turquia cai dentro das expectativas de tremores que ocorrem nos principais sistemas de falha de deslizamento", disse Hough.