Vídeo que aparenta mostrar feto "lutando pela vida" é ficção produzida por grupos antiaborto

O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou em setembro de 2023 o julgamento sobre a descriminalização do aborto nas primeiras 12 de semanas de gravidez, com voto favorável da ministra Rosa Weber. Nesse contexto, publicações visualizadas mais de 230 mil vezes nas redes sociais alegam mostrar imagens reais de um aborto, sugerindo que o feto sente dor durante o procedimento. Mas, segundo especialistas, as imagens não representam, necessariamente, um procedimento real: elas foram retiradas de um filme de ficção produzido por diretores antiaborto, com ajuda de uma associação “pró-vida”.

CENAS FORTES: Este é um vídeo real que a ministra Rosa Weber deveria assistir para saber, como um feto de 12 semanas já tem plena consciência de que está sendo assassinado, tentando fugir da sonda de sucção do médico diabólico. Emociona qualquer coração de pedra, menos o dela”, diz uma das publicações no X (antigo Twitter).

Publicações semelhantes, afirmando que o vídeo mostra como um feto “luta pela vida” circulam também no TikTok, Instagram e no Kwai.

Image
Captura de tela feita no dia 22 de setembro de uma publicação no X ( .)

No vídeo, é possível ver uma sala médica onde uma paciente está aparentemente passando por um aborto cirúrgico guiado por ultrassom. Além dos médicos, uma outra mulher acompanha o procedimento. Na imagem do ultrassom, o feto aparece se contraindo até ser aspirado por uma bomba.

Mas essas não são imagens reais da interrupção de uma gravidez, ao contrário do que afirmam as publicações.

Uma busca reversa por frames do vídeo indicou que o trecho faz parte do filme de ficção “Unplanned”, lançado nos Estados Unidos em 2019. Na época, o aborto era permitido no país e diversos estados norte-americanos tentavam limitar o direto a ele. Em 2022, a Suprema Corte norte-americana revogou a constitucionalidade do aborto, garantida desde 1973 após emblemático julgamento Roe v. Wade.

No Brasil, até a publicação desta checagem, o aborto voluntário só é permitido em casos de estupro, de má-formação do feto e quando há riscos à vida da mulher.

O recorte do filme circula na internet desde 2019 e, em setembro de 2023, ganhou novas publicações após noticias de que o STF iria iniciar o julgamento da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez.

No plenário virtual, a ministra Rosa Weber votou a favor da proposta. Weber foi a única entre os 11 ministros a votar na sessão, que foi suspensa a pedido do ministro Luís Roberto Barroso, para que o julgamento fosse retomado de forma presencial.

O recorte do filme que aparece nas postagens já foi checado pelo AFP Checamos em 2019. A ficção Unplanned se baseia na história real de Abby Johnson, ex-diretora de uma clínica de abortos da organização Planned Parenthood, que se tornou uma militante antiaborto após assistir a um aborto cirúrgico guiado por ultrassom.

“Decoro da dor”

De acordo com o relato feito por Abby Johnson em seu site, a cena viralizada supostamente representa o aborto por aspiração de um feto de 13 semanas. Segundo especialistas consultados pela AFP em 2019, o tamanho do feto visto na tela corresponde a de um feto de 13 semanas, mas é errôneo afirmar que representa a realidade e que o feto sente dor durante o procedimento.

No momento em que introduzimos uma cureta, isso realmente balança o saco embrionário e faz o embrião se mover. Mas para sentir a ‘dor’, que nós chamamos na verdade de nocicepção, é só depois das 20 semanas”, afirmou para a AFP, em 2019, Sophie Gaudu, ginecologista obstetra, responsável pela unidade de planejamento familiar e de aborto do hospital Bicêtre.

Ela denunciou, ainda, que as imagens mostradas tendem a ter um “decoro da dor” e ressaltou que as pacientes são anestesiadas para serem submetidas ao aborto cirúrgico, assim como acontece com o embrião. Gaudu reafirmou que o procedimento por ultrassonografia não acontece como é demonstrado nas imagens virais, principalmente no modo com o feto é aspirado.

O Dr. Israël Nisand, ginecologista obstetra e presidente do Colégio Nacional de Ginecologistas Obstetras Franceses (CNGOF) também garantiu à AFP na ocasião que o embrião ainda não desenvolveu seus centros de dor com 13 semanas. “Isso acontece, em vez disso, por volta das 22 semanas de amenorreia [ausência de menstruação por mais de três meses em uma mulher com ciclo regular]”.

O ginecologista Bernard Hédon, chefe de departamento do Centro Hospitalar Universitário de Montpellier complementou: “Para mim, estas imagens não são totalmente irrealistas, mas elas são selecionadas intencionalmente para amedrontar as mulheres”.

Durante um aborto, o feto pode realmente ter movimentos bruscos, aliás, como no resto da gravidez, mas isso não tem, de modo algum, um significado de dor”, explicou.

Para ele, as imagens foram escolhidas para convencer os telespectadores de que o feto sente dor no momento do aborto: “Alternância dos planos da tela com aqueles de um rosto chorando estão lá para sugerir que se trata de dor, querem jogar com o emocional, é o gênero de filme típico de organizações que querem convencer que o aborto é uma coisa ruim”.

O que está por trás do filme “Unplanned”?

Longe de ser imparcial ou científico, o filme “Unplanned” foi dirigido por dois cineastas abertamente contra o aborto. Veja abaixo o que eles afirmaram no site oficial do filme:

O aborto não é o ‘pecado imperdoável’. O Senhor oferece misericórdia, graça e perdão que leva à cura e à restauração da identidade. Nossa oração é que esta obra seja o catalisador que comece uma jornada pessoal de cura para cada pessoa que foi afetada pelo aborto”, escreveram, em tradução livre, Cary Solomon e Chuck Konzelman, escritores e diretores do filme.

Além disso, o filme é distribuído nos Estados Unidos pela Pure Flix, uma produtora de filmes ligados ao cristianismo evangélico, muitas vezes conhecida como o “Netflix dos cristãos”.

A associação cristã antiaborto “40 Days for Life” também esteve associada ao processo de criação do filme, sendo consultada a cada etapa, de acordo com a própria organização: “Por anos, nós temos trabalhado com os escritores da God’s Not Dead à medida que eles terminavam de escrever, dirigir e produzir a linda história de Abby Johnson”.

Image
Captura de tela do site oficial da associação “40 Days for Life”, feita em 24 de junho de 2019 ( .)

A associação afirma ser “a maior mobilização coordenada pró-vida em escala internacional da história, ajudando as populações de comunidades locais a pôr fim à injustiça do aborto”, e aparece, de fato, com destaque no site oficial do filme.

Referências

Há alguma informação que você gostaria que o serviço de checagem da AFP no Brasil verificasse?

Entre em contato conosco