O aborto em casos de estupro não é expressamente autorizado pela Constituição
- Publicado em 19 de junho de 2024 às 21:36
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- Por AFP Brasil
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“Aborto já está previsto na Constituição em caso de estupro, risco para a gestante, anencefalia. O que essa gente quer mesmo, é a liberação do aborto para esconder suas promiscuidades”, diz uma das publicações que circula no X. Alegações similares são compartilhadas também no Facebook.
A discussão nas redes ocorre em meio ao debate levantado pelo Projeto de Lei 1904/2024, que teve sua urgência aprovada pela Câmara dos Deputados em 12 de junho.
O PL propõe penas mais severas para a realização de abortos de gestações acima de 22 semanas. O texto altera o Código Penal para equiparar a realização de um aborto ao homicídio, e impõe penas de até 20 anos para quem interromper gestações de mais de 22 semanas, mesmo em casos de estupro.
Diante desse contexto, os conteúdos virais alegam que a proposta não iria interferir em gestações decorrentes de violência sexual, já que esses casos já seriam, supostamente, protegidos pela Constituição federal.
Mas, segundo especialistas ouvidas pelo AFP Checamos, esse argumento é falso: a possibilidade de uma mulher que engravidou em decorrência de um estupro realizar um aborto não é prevista pela Constituição, e sim pelo Código Penal — que é, justamente, a legislação que seria alterada pelo PL 1904.
O que a Constituição diz sobre o aborto?
Expressamente, nada. Na verdade, a palavra “aborto” não é citada em momento algum da Constituição Federal.
O que existe é uma interpretação jurídica com base nos Princípios Fundamentais descritos na Constituição, que incluem a dignidade da pessoa humana.
“Eu entendo que a concepção de dignidade humana prevista na Constituição Federal garante a liberdade da mulher decidir sobre o aborto. Só que essa minha concepção, esse meu entendimento (...) não está fechado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que é quem pode interpretar a Constituição”, explicou Adriana Ancona de Faria, doutora em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
“Há quem defenda que a liberdade da mulher decidir sobre o aborto em nome da sua dignidade, da integridade do seu corpo, se chocaria com o direito à vida do nascituro, que também é garantido constitucionalmente”, exemplificou a advogada.
Em situações como essa, existem regras jurídicas sobre como compatibilizar esses direitos em casos nos quais eles possam entrar em choque, acrescentou Helena Regina Lobo da Costa, doutora em Direito Penal e professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. “A dignidade humana orienta essa interpretação e deve-se buscar não excluir um dos direitos, mas limitar o mínimo possível”, pontuou.
Nesse sentido, Adriana Ancona afirmou que, em seu entendimento, a Constituição protegeria o direito de uma mulher estuprada de realizar o aborto, por se tratar da “dignidade mínima do ser humano”. “Só que não há previsão constitucional sobre isso, não há um artigo na Constituição que diga isso”.
Onde estão previstos os casos de aborto legal?
“A lei que estabelece as hipóteses de aborto é o Código Penal, que é de 1940”, afirmou Costa.
Como regra geral, o aborto é proibido, mas o Código permite que os médicos que praticam aborto não sejam punidos nos seguintes casos: se não há outro meio de salvar a vida da gestante; e se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Em 2012, o STF também acrescentou às exceções os casos de gravidez de feto anencefálico, quando julgou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54.
Atualmente, o Código Penal não estabelece nenhum limite de idade gestacional para a realização do aborto nos casos permitidos. A principal mudança proposta pelo PL 1904 é a de, justamente, estabelecer que o aborto só seria permitido, mesmo em caso de estupro, até a 22ª semana da gestação.
As publicações que alegam que o PL não iria interferir no direito de uma mulher estuprada realizar o aborto, portanto, estão equivocadas “em diversos pontos”, segundo Costa. “Aborto não está previsto na Constituição. Os casos citados estão no Código Penal ou foram incluídos pelo STF (anencefalia)”.
Qual a diferença entre algo previsto pela Constituição ou pelo Código Penal?
“A Constituição é hierarquicamente superior ao Código Penal em termos normativos. Por isso, se as regras relativas ao aborto estivessem na Constituição, o Código Penal e toda a legislação teriam a obrigação de seguir a mesma linha e qualquer alteração apenas poderia ser feita na própria Constituição, que tem procedimento mais complexo de alteração”, resumiu a doutora em Direito Penal.
O PL 1904 pode afetar o direito ao aborto em casos de estupro?
No entendimento das especialistas consultadas, sim. Como essa situação está, atualmente, autorizada pelo Código Penal, e o PL propõe modificar a redação do Código para estabelecer um limite de idade gestacional, Adriana Ancona de Faria entende que a proposta altera as situações de aborto legal previstas em lei:
“O PL 1904 (...) vem claramente dizer que é proibido qualquer interrupção da gravidez, que é proibido o aborto, mesmo o aborto de uma gravidez decorrente de estupro [em gestações acima de 22 semanas]. Então ele [o PL 1904] altera completamente o que está previsto no Código Penal”.
A doutora em Direito Constitucional ressalta que o impacto desse PL também precisa ser entendido diante da realidade brasileira: “O que a realidade mostra é que a maior parte das pessoas que sofrem estupro sofrem dentro de casa, em idade tenra”.
A afirmação de Ancona de Faria é corroborada por dados de 2022 publicados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que revelou que mais de 60% das vítimas de estupro no Brasil nesse ano tinham menos de 14 anos. Instituições e pesquisadores contrários à aprovação do PL argumentam que essas vítimas demoram a descobrir a gravidez, o que leva à interrupção de gestações mais avançadas (1, 2).
Segundo profissionais ouvidos em um texto publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, os abortos realizados em gestações com mais de 22 semanas representam até um terço das interrupções realizadas de forma legal no país.