O Fórum Econômico Mundial não pediu para o Ocidente “abolir o dinheiro”

O Fórum Econômico Mundial (FEM ou WEF, na sigla em inglês) não pediu às nações ocidentais o banimento do dinheiro em espécie e a implementação de um sistema ao “estilo chinês”, como afirmam publicações compartilhadas dezenas de vezes nas redes sociais desde 4 de julho de 2023. As “evidências” apontadas pelos usuários para embasar essa alegação são um relatório do FEM e a apresentação de um professor, onde não é mencionado esse pedido. A especulação de um fim iminente e completo do dinheiro com o objetivo de vigiar a população faz parte de uma teoria da conspiração.

“O Fórum Econômico Mundial (WEF) pediu às nações ocidentais que proíbam ‘urgentemente’ o dinheiro e implementem um sistema de pontuação de crédito social no estilo chinês em meio ao crescente e generalizado ceticismo público contra a agenda globalista”, afirmam publicações compartilhadas no Facebook e no X (antes Twitter).

O conteúdo também circula em espanhol.

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Captura de tela feita em 14 de agosto de 2023 de uma publicação no X (antes Twitter) ( .)

A alegação é compartilhada juntamente a um artigo em inglês com o título “WEF exige aos governos a abolição urgente do dinheiro e a introdução de sistemas de pontuação de crédito social”, publicado no portal The People’s Voice, anteriormente conhecido como NewsPunch, que já foi verificado pela AFP em ocasiões anteriores (1, 2, 3).

O artigo menciona um relatório do FEM e declarações de Eswar Prasad, professor de Economia da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, e especialista em moedas digitais.

O Fórum Econômico Mundial, fundado em 1971, é uma organização não governamental composta por líderes políticos, empresariais e atores da economia mundial que se reúne todos os anos em Davos, na Suíça.

Assim como outras organizações internacionais, o FEM é alvo frequente de teorias da conspiração, acusado de querer instaurar uma “nova ordem mundial” para “controlar a população”. A AFP já verificou desinformação relacionada à entidade em diversas ocasiões (1, 2, 3).

Relatório tirado de contexto

O artigo publicado no The People’s Voice não especifica o título do informe do FEM no qual diz se basear, mas contém a captura de tela de um gráfico, encontrado na página 15 de um relatório da organização intitulado, em tradução livre para o português, “Princípios Globais de Interoperabilidade da Moeda Digital do Banco Central”.

“Com mais de 100 países participando ativamente da pesquisa e desenvolvimento do CBDC [Dinheiro Digital do Banco Central], há um crescente reconhecimento do CBDC como uma ferramenta transformadora no futuro dos pagamentos digitais”, diz a apresentação do documento. “Para garantir uma implementação bem sucedida e promover a interoperabilidade, a coordenação global é fundamental”, lê-se em outro trecho.

Emitido pelos bancos centrais de diversos países, esse dinheiro permite que transações eletrônicas sejam feitas sem depender de terceiros, como um banco comercial. Assim, complementaria as notas e moedas e ofereceria uma solução de pagamento adicional em resposta à crescente desmaterialização dos pagamentos e à proliferação das criptomoedas.

No Brasil, o Banco Central informou em sua página oficial que a modalidade financeira está em fase de testes: “Em julho de 2023, 16 grupos representativos do mercado financeiro começaram a ser incorporados aos testes do Drex [moeda digital brasileira].

Para sustentar a alegação de que o FEM teria convocado os países ocidentais a “se livrarem” do dinheiro, o artigo destaca um parágrafo específico do relatório abaixo do gráfico na página 15. “Sociedades sem dinheiro: foco na redução do uso de dinheiro, promovendo pagamentos digitais e melhorando a educação financeira para impulsionar o crescimento econômico, levando em consideração as preocupações com a privacidade”, lê-se.

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Captura de tela feita em 15 de agosto de 2023 do relatório do FEM sobre moedas digitais ( .)

O gráfico e o parágrafo mencionados estão em uma seção específica dedicada à região da Ásia-Pacífico, e não ao mundo todo, ou aos países ocidentais, como mencionam as publicações virais.

Também não há menção no documento de “urgência” ou “apelo” para que os países ocidentais se livrem do dinheiro em espécie.

Na seção de “Considerações Globais” do relatório, o FEM observa que o CBDC pode “fortalecer a soberania monetária, fornecendo aos bancos centrais mais controle sobre o sistema monetário e ferramentas mais eficazes para a execução da política monetária”.

No entanto, o relatório ressalta que há riscos. Devido à sua natureza digital, esse dinheiro digital “poderá ser vulnerável a ataques cibernéticos, fraudes ou problemas operacionais que podem perturbar o funcionamento do sistema financeiro”. Da mesma forma, o FEM aponta para o risco de um possível uso indevido das sanções internacionais vigentes contra certos regimes.

Em seu site, o FEM publicou um memorando explicativo sobre o dinheiro digital dos bancos centrais, que detalha seus benefícios e riscos potenciais. No site da organização também há artigos de colaboradores mencionando sociedades “sem dinheiro” e outros destacando os possíveis problemas que isso causaria.

Apresentação de Eswar Prasad tirada de contexto

Para “provar” o plano de eliminar o dinheiro, algumas publicações também compartilham um vídeo do professor Eswar Prasad, da Universidade de Cornell. Por meio de uma pesquisa por palavras-chave, a AFP encontrou a apresentação de Prasad, chamada “O futuro do dinheiro”, publicada no canal do FEM no YouTube em 28 de junho de 2023.

Na gravação, o professor analisa as criptomoedas, a recente quebra do banco norte-americano Silicon Valley Bank e os benefícios e riscos do dinheiro digital.

Sobre transações financeiras com moeda digital, ele aponta as “enormes vantagens”, mas destaca que é possível ver as coisas de um modo “mais obscuro”, com os governos decidindo que “essas unidades são usadas para comprar certas coisas, mas não outras, consideradas menos desejáveis, como munições, drogas, pornografia, etc”.

E acrescenta: “Se houver unidades monetárias do Banco Central com características diferentes, ou se a moeda do Banco Central for utilizada como canal para a realização de políticas econômicas de forma muito específica, ou mais amplamente para políticas sociais, isso poderia afetar a integridade da moeda do Banco Central e a integridade e independência dos bancos centrais”.

Em nenhum momento da gravação Prasad pede a eliminação do dinheiro em espécie, e tanto ele quanto o FEM alertam sobre os riscos potenciais das moedas digitais.

O fim do dinheiro?

A preocupação com uma sociedade sem dinheiro em espécie frequentemente surge nas redes sociais e nos canais digitais como parte de teorias da conspiração ligadas à Agenda 2030 das Nações Unidas, e a uma vigilância generalizada de todas as transações e dos cidadãos.

Embora seja verdade que as transações em dinheiro estejam diminuindo em muitos países, economistas e bancos centrais explicam que o fim do dinheiro em espécie não está à vista. A AFP já verificou alegações sobre este tema em espanhol (1, 2).

Ao mesmo tempo, de acordo com uma pesquisa do Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês), publicada em 10 de julho de 2023, cerca de 24 bancos centrais devem lançar uma versão digital de sua moeda até 2030.

Quinze dos projetos poderiam ser moedas destinadas ao público em geral e nove seriam das chamadas versões no “atacado”, ou seja, destinadas a transações entre bancos centrais e instituições financeiras.

Na Europa, o euro digital, que seria apenas uma opção de pagamento adicional ao papel-moeda, ainda está em fase de planejamento. Em 28 de junho de 2023, a Comissão Europeia apresentou um marco legislativo para uma moeda digital que, armazenada em um cartão ou celular, permitiria pagamentos online, bem como pagamentos offline que seriam tão anônimos quanto moedas e notas.

Na China, o desenvolvimento do “iuane digital”, que permite o armazenamento de dinheiro e a realização de transações por meio de um aplicativo desenvolvido pelo instituto de pesquisa de moeda digital do Banco Popular chinês, levanta questões sobre o envolvimento das autoridades e seu direito de controle de transações e, portanto, sobre o respeito à privacidade.

Referências

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