Especialista da ONU falou sobre discriminação contra pessoas LGBT, e não sobre pedofilia

Em junho de 2023, o especialista independente da Organização das Nações Unidas Víctor Madrigal-Borloz apresentou um relatório sobre as “interseções” entre dois direitos humanos: a liberdade de culto e a não discriminação. Mas usuários nas redes sociais compartilharam mais de 11 mil vezes, desde 6 de agosto, que o especialista alertou os “cristãos” que, se não aceitassem a “legalização da pedofilia”, seriam “excluídos da sociedade”. Mas Madrigal-Borloz não se refere à pedofilia em nenhum momento do relatório. O Conselho de Direitos Humanos da ONU disse à AFP que as alegações são falsas.

“As Nações Unidas alertaram os cristãos de que, se não abraçarem totalmente a legalização da pedofilia, serão excluídos da sociedade”, diz o texto contido em uma imagem que circula no X (antes Twitter), que contém também a logomarca do site Tribuna Nacional.

No Facebook, publicações também difundem o conteúdo usando um link para o artigo publicado no mesmo portal. A alegação também é compartilhada no Telegram, no TikTok e no Kwai.

A narrativa circula, ainda, em espanhol e em inglês.

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Captura de tela feita em 14 de agosto de 2023 de uma publicação no X (antes Twitter) ( .)

O artigo do site Tribuna Nacional é uma tradução de um texto em inglês publicado no portal The People’s Voice. Tanto o Tribuna Nacional quanto o The People’s Voice já foram checados pela AFP em diversas ocasiões (1, 2, 3).

O texto em português, ilustrado com uma foto de Víctor Madrigal-Borloz durante uma reunião da ONU, é intitulado “Chefe da ONU: cristãos que não aceitarem ideologia esquerdista serão excluídos da sociedade”. Em seguida, é afirmado: “As Nações Unidas alertaram os cristãos de que, se não abraçarem totalmente a legalização da pedofilia, serão excluídos da sociedade”.

O site menciona, ainda, uma informação deturpada sobre um relatório do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (UNAIDS), ao afirmar que esse documento pedia a “descriminalização do sexo entre adultos e menores”. A alegação também foi reproduzida por usuários nas redes sociais e verificada pelo AFP Checamos.

Sessão 53 e relatório

O artigo menciona que o especialista haveria dito a frase viral durante a 53ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Madrigal-Borloz é um advogado costa-riquenho que trabalha como especialista independente sobre a proteção contra a violência e discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero no Conselho de Direitos Humanos. Ele não tem status de “chefe da ONU”, como asseguram as publicações virais.

Na ocasião mencionada nas publicações, em 21 de junho de 2023, Madrigal-Borloz apresentou seu último relatório, intitulado, em tradução livre para o português: “Liberdade de religião ou crença, e liberdade contra violência e discriminação baseada em orientação sexual ou identidade de gênero”.

O relatório se concentra na “interseção” entre o direito à liberdade de culto e pensamento com o direito à não discriminação em razão da orientação sexual, como consta no resumo do documento, na sua página inicial.

Durante seu discurso, o especialista assegurou que as pessoas que fazem parte da população LGBTIQ “frequentemente são marginalizadas, estigmatizadas e excluídas das comunidades religiosas simplesmente por serem quem são”.

Nesse sentido, disse que “estar atento às vozes e práticas de comunidades inclusivas pode ajudar a mudar as narrativas que afirmam que o exercício da liberdade de religião ou crença é incompatível com a igualdade em usufruir dos direitos humanos por parte das pessoas LGBT”.

O relatório também alerta sobre países em que a comunidade LGBTQI é submetida à violência estrutural, como no caso de Uganda, onde em 2023 as autoridades aprovaram uma lei de criminalização que pune pessoas do mesmo sexo que têm relações sexuais e que organizações de direitos humanos consideraram “repressiva”. Essa legislação inclui pena de morte em casos considerados como “homosseuxalidade agravada”.

Além disso, Madrigal-Borloz recomendou aos Estados “desmantelar” leis e políticas públicas que criminalizem a intimidade entre pessoas do mesmo sexo e asseguar que suas legislações se alinhem com os padrões internacionais de direitos humanos neste tema.

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Papa De, ativista queer de Uganda, durante um protesto contra o projeto de lei anti-homossexualidade do país, em Pretória, em 4 de abril de 2023 ( AFP / Phill MAGAKOE)

A sessão presidida por Madrigal-Borloz de 21 de junho está disponível em vídeo no site da ONU e inclui intervenções de representantes do Unicef e da Unesco, entre outras agências da ONU, além de representantes de vários Estados-membros, que compartilharam algumas das ações tomadas em seus países para erradicar a discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero.

Nem na sessão nem no documento mencionado é feita referência a uma suposta “descriminalização da pedofilia”, nem a uma exclusão de comunidades religiosas da sociedade, como mencionam as publicações virais.

Em sua introdução, o relatório assegura que a liberdade de pensamento, consciência e culto são “uma parte fundamental” da estrutura da Declaração Universal dos Direitos Humanos e menciona a “importância do respeito ao sistema de valores” das religiões.

Além disso, durante seu discurso, Madrigal-Borloz reafirma a importância da coexistência entre o direito a seguir uma religião e o direito a viver plenamente sua sexualidade sem ser discriminado, e que ambos se complementam sem existir uma contradição nisso.

Consultado pela AFP, Pascal Sim, assessor de imprensa do Conselho de Direitos Humanos da ONU, assegurou em 10 de agosto de 2023: “Confirmo que nem sua declaração nem o relatório do especialista independente para a 53ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos menciona” as alegações contidas no artigo do The People’s Voice.

Sobre o abuso sexual de menores, o sistema das Nações Unidas conta com vários protocolos e recomendações, como o artigo 34 da Convenção dos Direitos da Criança, que recomenda aos Estados-membros a adoção de medidas contra a indução e coação de crianças para “atividades sexuais ilegais” e contra a exploração sexual de menores em suas diversas formas.

Referências

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