Recordes de calor não foram “quebrados” por mudança nas medições de agência espacial

Em meio aos registros de calor extremo em áreas do sul da Europa, da China e da América do Norte em julho de 2023, publicações compartilhadas desde o dia 22 deste mês acusam a Agência Espacial Europeia (ESA) de ter alterado o método de análise de dados de temperatura, passando a medi-la no nível do solo, onde é mais elevada, e não no ar. Mas a instituição não alterou a forma de coleta de dados e, além disso, a responsável por registrar os recordes de temperatura é a Organização Meteorológica Mundial (WMO), que utiliza outros dados: medições feitas por estações meteorológicas.

Dos Estados Unidos ao sul da Europa, passando pelo norte da África e China, várias regiões do hemisfério norte foram afetadas desde o início do verão por ondas de calor excepcionais em termos de extensão e consequências dramáticas.

De acordo com o observatório climático europeu Copernicus, julho de 2023 está a caminho de se tornar o julho mais quente já registrado, após um mês de junho também de recorde.

Cientistas e organizações internacionais apontam a ligação entre essas ondas de calor e as mudanças climáticas e alertam para a sua intensificação.

Usuários no Facebook (1, 2) e no Twitter, agora chamado X, afirmam, porém, que o aumento das temperaturas se deve a uma mudança no método de medição: “A ESA (Agência Espacial Europeia) passou a usar as temperaturas de superfície da Terra e não as temperaturas do ar a 2 m acima da superfície, o que significa que eles mudaram os protocolos de medição anteriores, tudo pra enganar e convencer, que falam a verdade”.

O conteúdo também circula em francês.

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Captura de tela feita em 28 de julho de 2023 de uma publicação no Facebook ( .)

O conteúdo é compartilhado junto a um mapa em que se lê a seguinte frase em inglês: “Land surface temperature” (“Temperatura da superfície terrestre”, em tradução livre).

Uma busca por palavras-chave mostra que a imagem foi publicada em 13 de julho de 2023 pela ESA em seu site e em suas redes sociais (1, 2). Nas publicações, eles informam que o mapa exibe “as temperaturas da superfície terrestre atingindo 46°C em Roma e Madri, e 47°C em Sevilha”.

Outras postagens incluem um mapa da Espanha do site do Copernicus, um programa europeu de coleta de dados sobre a situação da Terra, juntamente com um artigo sobre a onda de calor que afeta o país.

O que dizem as publicações da ESA e do Copernicus?

Em 12 de julho de 2023, o Copernicus dedicou a “imagem do dia” em seu site à onda de calor que afeta a Espanha com um mapa do dia anterior mostrando, como destacado pela AFP no retângulo em vermelho, a “temperatura da superfície da terra” medida em graus Celsius. As áreas em cinza correspondem a uma temperatura de cerca de 60°C, como indica a escala do mapa.

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Captura de tela feita em 23 de julho de 2023 no site do Copernicus ( .)

O mapa foi publicado junto a um artigo em inglês intitulado “Forte onda de calor atinge Espanha”.

“Em 11 de julho de 2023, a temperatura da superfície terrestre (LST) em algumas áreas da Estremadura (Espanha) ultrapassou 60°C, conforme destacado nesta visualização de dados derivada de medições do instrumento Copernicus Sentinel-3 Sea and Land Surface Temperature Radiometer (SLSTR). A onda de calor em curso na Espanha esta semana está resultando em um total de 13 comunidades autônomas estando em risco extremo (alerta vermelho), risco significativo (alerta laranja) e risco (alerta amarelo) devido às temperaturas máximas que, em alguns casos, irão exceder 40°C e atingir uma máxima de 43°C”, explica o texto.

“A temperatura da superfície terrestre (LST) é a temperatura do solo e não deve ser confundida com a temperatura do ar”, diz uma nota no final do artigo.

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Captura de tela feita em 23 de julho de 2023 no site do Copernicus ( .)

No dia seguinte, a ESA publicou um artigo sobre a onda de calor na Europa. Intitulado “A Europa se prepara para um mês de julho sufocante”, o texto fala sobre a temperatura do ar e a temperatura da superfície da terra.

“O maior recorde de temperatura da história europeia foi quebrado em 11 de agosto de 2021, quando a temperatura de 48,8°C foi registrada em Floridia, uma cidade italiana na província siciliana de Siracusa. Esse recorde pode ser batido novamente nos próximos dias”, diz a ESA.

“Em algumas cidades a superfície da terra ultrapassou os 45°C, especialmente em Roma, Nápoles, Taranto e Foggia. Nas encostas orientais do Monte Etna, na Sicília, muitas temperaturas foram registradas acima de 50°C”, lê-se na sequência.

O artigo explica a diferença entre os dois tipos de medições: “Enquanto as previsões meteorológicas usam temperaturas do ar previstas, este instrumento de satélite mede a quantidade real de energia irradiada da Terra – e representa a temperatura da superfície terrestre. Portanto, o mapa mostra a temperatura real da superfície da Terra, que é significativamente mais alta do que a temperatura do ar”.

O instrumento de satélite mencionado faz parte da rede “Sentinels”, em uma missão da ESA junto ao Copernicus, que conta com um radiômetro para medir a temperatura da superfície da Terra.

Em uma atualização publicada em 18 de julho no artigo, a ESA especifica mais uma vez: “A temperatura da superfície terrestre é o calor sentido na superfície da Terra. A temperatura do ar, dada na nossa previsão meteorológica diária, é uma medida do calor do ar acima do solo”.

Nenhum dos artigos afirma que recordes de calor foram quebrados. Além disso, nos dois casos eles se referem tanto às temperaturas da superfície terrestre quanto às temperaturas do ar, deixando claro que se tratam de dois dados diferentes, e não que a medição no solo teria substituído a do ar.

“Não mudamos nosso método de leitura de temperatura”, confirmou à AFP em 23 de julho Clément Albergel, especialista em aplicações climáticas da ESA. Em 2022, a agência já havia publicado artigos sobre a temperatura da superfície terrestre (1, 2).

“A ESA não tem a atribuição de estabelecer recordes de temperatura” e “os dados de temperatura da superfície terrestre obtidos do espaço não são utilizados para estabelecer registos de calor aprovados pela Organização Meteorológica Mundial”, acrescentou.

Critérios para estabelecer registros de temperatura

A Organização Meteorológica Mundial (WMO, na sigla em inglês), agência especializada da Organização das Nações Unidas, é a “autoridade reconhecida para verificar registros meteorológicos extremos”, lê-se em seu site. Ela mantém um arquivo oficial de clima e extremos climáticos, incluindo registros de temperatura (global e por hemisfério), precipitação, aridez, raios e mortalidade relacionada ao clima.

“A WMO é responsável por rastrear os registros de temperatura globalmente e por hemisfério – e, em alguns casos, em nível continental (como na Europa). Fazemos isso com base em instrumentos de estações meteorológicas, NÃO em satélites”, confirmou à AFP em 25 de julho de 2023 uma porta-voz da WMO .

“Para previsões meteorológicas (e estabelecer registros de temperatura), é usada a temperatura do ar – dois metros acima do solo”, disse a porta-voz.

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( .)

A WMO publicou um artigo em 17 de julho de 2023 explicando o longo processo de registros de temperatura.

“Atualmente, a WMO está verificando duas leituras de temperatura de 54,4°C, registradas em Death Valley, Califórnia, em 16 de agosto de 2020 e novamente em 9 de julho de 2021. Se validada, esta seria a temperatura mais alta na Terra desde 1931 e a terceira temperatura mais alta já registrada no planeta.”

“As investigações são minuciosas e, portanto, levam tempo. Os resultados são publicados em revistas científicas e revisados por pares. Os sensores usados em 2020 e 2021 no Death Valley devem ser desmontados e enviados a um laboratório independente para calibração e teste. Um dos testes foi concluído e estamos aguardando o resultado do segundo”, continua.

A WMO especifica neste artigo que se os recordes de temperatura fossem quebrados durante as atuais ondas de calor, publicaria “uma rápida avaliação preliminar” e, então, iniciaria “avaliações detalhadas como parte de [seu] processo meticuloso de verificação”.

Questionado pela AFP em 25 de julho de 2023, um porta-voz do Copernicus confirmou que o observatório europeu também não “modificou seus métodos de medição”. Em seu site, o serviço climático Copernicus detalha que as temperaturas usadas são “medidas perto da superfície da Terra, a uma altura de aproximadamente dois metros acima do solo”.

Os cientistas monitoram a temperatura da superfície terrestre para melhor “entender e prever os padrões meteorológicos e climáticos”, bem como “observar incêndios”. Essas medidas são também particularmente importantes para “agricultores que otimizam a irrigação das suas plantações” e para urbanistas que procuram melhorar as estratégias de mitigação do calor, explica a ESA.

Referências

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