Vídeo de dromedários circula desde 2021 e não mostra a primeira nevasca saudita em um século
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- Publicado em 9 de março de 2023 às 20:01
- 6 minutos de leitura
- Por Nathan GALLO, AFP França, AFP México, AFP Brasil
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“Arábia Saudita: Neve cai pela primeira vez em quase 100 anos”, diz a legenda do vídeo compartilhado no Twitter, no Facebook, no TikTok e no Telegram.
O conteúdo também circula em espanhol, em inglês e em francês.
As imagens mostram três dromedários, filmados durante a noite em uma zona montanhosa e desértica, em meio a uma nevasca.
Alguns usuários questionam o consenso científico sobre o aquecimento global, insinuando que esse episódio de neve em uma região com temperaturas muito altas colocaria em dúvida o que se sabe sobre as mudanças climáticas.
“Derrubando a narrativa sobre o aquecimento global, Greta Thumberg faz cara de paisagem, neve cai pela primeira vez em 100 anos na Arábia Saudita”, diz uma das mensagens. Outra, em espanhol, questiona: “Arábia Saudita: a neve cai pela primeira vez em quase 100 anos. O que aconteceu com o aquecimento global?”.
Vídeo gravado em 2021
Uma busca reversa no Google por trechos do vídeo levou a artigos e vídeos publicados pela imprensa em fevereiro de 2021 (1, 2, 3, 4). Eles relatavam a queda de neve nas montanhas ao norte da cidade de Tabuk, na Arábia Saudita, no dia 18 daquele mês, quando a região vivenciou fortes tempestades e nevascas.
O vídeo também foi compartilhado pelos usuários na época a fim de questionar o aquecimento global.
Neve na Arábia Saudita
Ao contrário do que tem sido apontado nas publicações virais, as nevascas não são tão incomuns em certas áreas da Arábia Saudita e, especificamente, na região montanhosa perto da fronteira com a Jordânia.
Durante a nevasca em Tabuk em 2021, o porta-voz da embaixada da Arábia Saudita nos Estados Unidos, Fahad Nazer, explicou que esse tipo de fenômeno meteorológico “não é raro nessa região”, em um tuíte publicado em 18 de fevereiro daquele ano.
“Ao contrário da crença popular, nem todas as regiões do reino [da Arábia Saudita] são quentes durante o ano todo”, escreveu ele.
There is no denying climate change but it's also not that rare for this region -Tabuk - in northwestern Saudi Arabia to experience snow. Contrary to popular perception, not every region in the kingdom is warm year-round.
— Fahad Nazer فهد ناظر (@fanazer) February 18, 2021
Isso foi confirmado pela Organização Meteorológica Mundial (OMM) à AFP em 27 de fevereiro de 2023: “Na verdade, houve episódios de neve na Arábia Saudita no passado, antes de 2021”, explicou Omar Baddour, chefe do Serviço de Vigilância do Clima.
“No inverno, a intrusão de ar frio das regiões polares geralmente afeta o Oriente Médio, incluindo Líbano, Síria, Jordânia e áreas vizinhas”, disse o meteorologista. “Em alguns casos, embora seja raro, isso pode migrar para o sul, para a Arábia Saudita. Se houver umidade suficiente no ar e a temperatura cair muito perto ou abaixo de zero grau na superfície, pode causar nevascas inclusive na região desértica”, apontou.
Nos últimos anos, vários artigos da imprensa internacional informaram sobre nevascas nessa região desértica do noroeste da Arábia Saudita, durante os invernos de 2013-2014, 2016-2017 e mais recentemente, em 2022. A AFP publicou fotos das nevascas do ano passado.
A Autoridade de Turismo da Arábia Saudita também explicou que a neve não é um fenômeno “incomum” e inclusive promove em seu site passeios em trenós na neve no norte do país.
Aquecimento global
A região de Tabuk também passou por um período de neve no início de 2023, de acordo com um artigo publicado pelo meio de comunicação saudita Arab News em 10 de janeiro.
Mas esses períodos de frio não contestam o que se sabe sobre o aquecimento global. As temperaturas anuais na Arábia Saudita e na região de Tabuk aumentaram constantemente desde o início do século XX, como mostram dados do portal de mudanças climáticas do Banco Mundial.
“Em geral, [essas nevascas] não contradizem o que esperamos das mudanças climáticas. Globalmente, temperaturas extremamente baixas estão se tornando menos frequentes, mas ainda estão sendo registradas e continuarão a ser registradas”, explicou Omar Baddour.
O especialista também detalhou que uma maior evaporação, ligada ao aquecimento dos oceanos, também pode causar “maior umidade na atmosfera”, o que pode acabar “favorecendo” as nevascas.
Por isso é importante não confundir clima e tempo. Conforme detalhado em um vídeo explicativo da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA, na sigla em inglês): o tempo equivale às condições da atmosfera em um momento e local específicos e é descrito por elementos que podem ser medidos regularmente (temperatura, pressão do ar, quantidade de precipitação, velocidade do vento, etc).
Já o clima, observou a NOAA, é a média do tempo em longo prazo para um local ou região. “Diferentemente do tempo, o clima muda mais lentamente, muitas vezes ao longo de milhares de anos. Outra forma de ver a diferença (…) é que o clima nos diz que tipo de roupa é preciso ter no armário, enquanto o tempo diz o que vestir no dia a dia”, explicou a instituição.
Em escala global, a Organização Meteorológica Mundial anunciou em 12 de janeiro de 2023 que os últimos oito anos foram os “mais quentes já registrados no mundo”. Essa constatação ratifica as previsões do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), que desde a sua criação, em 1988, alerta para a aceleração do aquecimento global desde os tempos pré-industriais.
A existência de mudanças climáticas causadas pelo homem, um consenso científico, é regularmente questionada nas redes sociais. O AFP Checamos já verificou várias publicações climáticas falsas ou enganosas (1, 2, 3).