Este homem com tatuagens nazistas não é chefe da polícia em Kiev, como afirmam nas redes sociais
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- Publicado em 31 de março de 2022 às 19:11
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- Por Maja CZARNECKA, Marion DAUTRY, AFP Belgrado, AFP Polônia, AFP Brasil
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As alegações foram compartilhadas no Facebook (1, 2, 3), Twitter (1, 2) e Instagram.
“Chefe da polícia de KIEV, não tenho a menor noção do que está falando mas pelo cordão pendurando no pescoço e com essa armas, boa coisa não é!! NAZISMO PURO!!!!”, lê-se em uma publicação compartilhada no Facebook. “Artem Bonov, atual chefe de polícia de Kiev”, afirma um outro usuário ao compartilhar a imagem de um homem careca com tatuagens de suásticas e outros símbolos nazistas pelo corpo e empunhando uma arma.
O mesmo homem aparece em vídeo compartilhado na Polônia juntamente com a falsa alegação de que uma nova lei proíbe que refugiados ucranianos sejam expulsos de suas casas mesmo que tenham cometido crimes. A AFP verificou o conteúdo que circulou em polonês.
O homem que aparece nas imagens é Artem Bonov. Ele não é o vice-chefe da polícia de Kiev nem o chefe de polícia, como afirmado nas publicações compartilhadas em outros idiomas, mas um fundamentalista de extrema direita que faz apologia ao nazismo.
Outras agências dedicadas à verificação de fatos chegaram à mesma conclusão, como Ellinika Hoaxes na Grécia e Istinomer na Sérvia.
Uma busca reversa pelas imagens leva a publicações nas mídias sociais que identificam o homem das fotos como um neonazista chamado Artem Bonov. Registros semelhantes que circularam em polonês e que foram compartilhados pela embaixada russa na França também o identificam como tal. Nos registros analisados pela AFP, é possível identificar semelhanças nas joias e tatuagens ostentadas pelo homem, por isso, pode-se concluir que os homens de ambas fotos são a mesma pessoa.
A AFP entrou em contato com Michael Colborne, jornalista e pesquisador da Bellingcat, site de jornalismo investigativo holandês, e autor de “From the Fire of War: The Ukrainian Azov Movement and the Global Far Right” (“Fogo da Guerra: O Movimento Azov Ucraniano e a Extrema Direita Global”, em tradução livre para o português), para obter informações sobre Artem Bonov. “Reconheço o rosto e as tatuagens da franja neonazista hardcore do Telegram da Ucrânia”, disse ele à AFP por e-mail em 25 de março de 2022.
Ele indicou um vídeo publicado no Youtube em 15 de abril de 2020, com o título "Artem Bonov in the forbidden zone" (“Artem Bonov na zona proibida” em tradução livre para o português). A foto compartilhada em umas das publicações remete à captura de tela deste vídeo.
Bonov não é chefe nem vice-chefe da polícia de Kiev
A AFP entrou em contato com o Ministério do Interior ucraniano a respeito das alegações compartilhadas nas redes sociais sugerindo que Bonov seria chefe ou vice-chefe da polícia de Kiev. Um porta-voz do ministério indicou à reportagem, em 23 de março de 2022, o site da polícia de Kiev, onde é exibida a lista com o atual diretor do departamento, Nebitov Andrey Anatolyevich, e os quatro vice-chefes. Nenhum deles é Artem Bonov.
A AFP também consultou os arquivos do site, disponíveis de 27 de novembro de 2019 a 10 de outubro de 2021. Pode-se observar que a composição da equipe é a mesma que a vista atualmente, e Bonov nunca figurou como chefe ou vice-chefe.
A galeria abaixo mostra o atual chefe e os vice-chefes da polícia na região de Kiev, na Ucrânia:
Além disso, a equipe de checagem da AFP fez uma consulta no canal do YouTube e na página do Facebook da polícia regional de Kiev, mas também não encontrou nenhum registro de Bonov como membro da equipe policial.
Em nenhum momento Bonov aparece em cargo de liderança no site da polícia da cidade de Kiev entre 2019 e 28 de outubro de 2021 (quando a equipe, da mesma forma, é a mesma que a atual). Ele também não aparece em vídeos postados no canal da polícia no YouTube ou em sua página no Facebook.
As fotos abaixo mostram os oficiais que ocupam postos de liderança da polícia de Kiev em 29 de março de 2022:
O site da polícia nacional também não mostra Bonov em nenhuma posição de liderança.
"Ele nunca foi vice-chefe da polícia de Kiev, ou em qualquer posição como essa, até onde eu saiba", afirmou Colborne à AFP.
Uma publicação em croata mostra outras imagens de Bonov vestindo o que se assemelha a um uniforme da polícia. Uma pesquisa reversa por essa foto com o mecanismo de busca Tineye mostra que o registro começou a circular em 2015. No entanto, as versões ao vivo das postagens não estão disponíveis para consulta.
É possível verificar que o uniforme exibido na imagem é antigo pelo fato de que a inscrição "milícia" ainda aparece na parte de trás. Esses uniformes foram usados até novembro de 2015 e logo após, quando a polícia ucraniana substituiu a milícia herdada da União Soviética, foram substituídos por novos.
As circunstâncias em que a foto foi tirada permanecem obscuras, o que torna impossível determinar com base na foto se Bonov era à época membro das forças de segurança.
O registro mais antigo encontrado pela AFP de Bonov é de 2014. Um pesquisador da extrema direita na Ucrânia, Anton Shekhovtsov, postou em sua conta no Facebook uma foto dele fazendo a saudação nazista com outros jovens. Há uma inscrição da polícia de Kiev na parede. Na legenda, está escrito que a foto foi tirada em uma das salas da polícia em Kiev.
"Com o neonazista Vadym Troyan nomeado chefe da polícia regional de Kiev, não ficaria surpreso se esses caras fossem policiais recém-contratados", diz o texto da publicação, seguida de uma atualização afirmando que a foto foi, de fato, "provavelmente tirada em julho de 2014, ou seja, antes da nomeação de Troyan."
A imagem gerou polêmica. Reportagens publicadas pela mídia na ocasião, como esta em 1º de dezembro de 2014, dizem que "o departamento regional do Ministério da Administração Interna informa que as pessoas nas fotos e vídeos escandalosos não são policiais".
"A polícia especulou que o vídeo escandaloso foi gravado em um momento em que muitos cidadãos queriam trabalhar na aplicação da lei e foram entrevistados e examinados. Segundo o Ministério da Administração Interna, o vídeo mostra um grupo de jovens que acompanhava aqueles que queriam se tornar policiais e só vieram se divertir no prédio da polícia regional de Kiev", diz o artigo.
Uma busca em ucraniano por menções a Bonov mostra que ele teria sido nomeado "vice-chefe da polícia de Kiev" em sites e postagens em blogs já em 2015, ao lado da foto de um homem tatuado. Uma busca por "nomeação de vice-chefe da polícia de Kiev" também em ucraniano publicada antes do final de 2014 mostra que a mesma foto foi usada para alegar falsamente que o homem era "Vadim Trojan".
Contudo, a foto não mostra Bonov, que tem tatuagens diferentes.
O site de verificação de fatos ucraniano Stop Fake investigou a imagem em 2020 e descobriu que o homem era Alexei Maksimov, que morava em São Petersburgo. Ele aparece em reportagens da mídia russa sobre a busca em seu apartamento em 2015 (1, 2) como "Alexei Maksimov, apelidado de Mukha, líder do chamado 'Fundo de Assistência aos Prisioneiros Políticos de Direita'".
Postagens de mídia social de 2014 e 2015 discutindo a foto e a alegação, como esta encontrada por Ellinika Hoaxes, indicam que a afirmação pode ter sido uma piada entre os internautas e uma crítica satírica à nomeação oficial do ex-líder do Azov Vadim Troyan como chefe da Direção Principal do Ministério da Administração Interna da polícia na região de Kiev em 2014. Troyan foi nomeado chefe da Direção Principal da Polícia Nacional na capital ucraniana após a reforma da polícia e vice-chefe da Polícia Nacional em 2019, como informou a mídia ucraniana.
A postagem encontrada por Ellinika Hoaxes menciona um perfil no Vkontakte, rede social com sede em São Petersburgo, para Bonov. A conta está atualmente suspensa, mas os arquivos mostram que há indícios de ela ter pertencido a Bonov, e que ele parecia estar ciente da "brincadeira" ou conhecer o próprio Maksimov desde que publicou a mesma foto do homem careca sem camisa em novembro de 2014 nesta conta, com a descrição: "o lendário Muxha".
De acordo com a pouca informação disponível, não há confirmação da tese de que Bonov tenha servido como vice-chefe da polícia de Kiev. Também não encontramos nenhuma indicação de que ele tenha trabalhado no Ministério do Interior ucraniano, além da foto antiga dele em um uniforme que não é usado desde novembro de 2015.
Bonov, Azov e nazistas russos
Embora fontes não verificadas sugiram que Bonov fez parte do batalhão Azov em 2014, há pouca informação disponível sobre seu envolvimento. Arquivos antigos de sua página no Vkontakte mostram menções tanto ao Azov quanto à divisão Misanthropic, um grupo neonazista que apareceu na Ucrânia em 2014 quando vários ativistas de extrema direita se juntaram aos manifestantes pró-União Europeia em Maidan, em Kiev, contra a repressão do então presidente ucraniano pró-Rússia Viktor Yanukovitch.
Essa revolução pró-ocidental na Ucrânia foi seguida pela anexação em 2014 da península da Crimeia, por Moscou, que não foi reconhecida pela comunidade internacional.
A Rússia também instigou o surgimento de movimentos separatistas pró-Rússia no leste, em Donetsk e Lugansk, regiões que fazem fronteira com a Rússia. Desde então, o exército ucraniano vem lutando contra essas autoproclamadas repúblicas independentes em uma guerra que já custou mais de 14.000 vidas, incluindo civis e combatentes ucranianos e pró-russos.
Em 2014, o grupo paramilitar ultranacionalista Azov possibilitou a libertação de Mariupol, enquanto esta cidade estava nas mãos de separatistas pró-Rússia.
"Em setembro de 2014, foram assinados os primeiros acordos de Minsk, que preveem a cessação das hostilidades, mas também a integração dessas estruturas paramilitares nas forças regulares, tanto ucranianas quanto separatistas. Essa é uma garantia oferecida pelos Estados ao dizer que aqueles elementos que possam representar uma ameaça ou impedir uma desescalada serão colocados sob ordens. A maioria desses grupos, como o batalhão Azov, se juntará à guarda nacional ucraniana e se tornará um regimento, sob a autoridade direta do Ministro do Interior", explicou em 11 de março à AFP Adrien Nonjon, pesquisador do Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais (Inalco), especialista em Ucrânia e extrema direita pós-soviética.
Não há informações suficientes sobre a biografia de Bonov. "Dizem que ele é ucraniano, mas tende a se comunicar exclusivamente em russo online – o que não é necessariamente incomum para uma figura de extrema direita ucraniana. Mas o fato de ele ser ligado a origens em Lviv torna isso estranho, já que poucas pessoas dessa cidade, especialmente pessoas de mentalidade nacionalista, se comunicavam quase exclusivamente em russo", observou Michael Colborne.
De acordo com as fontes dos pesquisadores, seu sotaque no vídeo postado no YouTube e mencionado em alguns posts verificados pela AFP não soa como um sotaque de Lviv, mas "como se fosse falado por um falante de russo que o aprendeu". Algumas menções a ele em artigos dizem que ele nasceu na Rússia.
Bonov não é estranho à extrema direita russa. Em um vídeo postado em seu canal no YouTube por volta de 5 de março de 2022, ele é visto com pessoas identificadas por Colborne como membros do Azov e neonazistas russos.
"O primeiro homem falando no vídeo é Nikita Makeev, que obteve a cidadania ucraniana em 2019 e serviu em Azov. O homem deitado na cama é Artem Krasnolutsky, um neonazista russo que supostamente serviu em Wagner. E na porta, claro, é Bonov", descreveu Michael Colborne.
Wagner é uma organização paramilitar de origem russa que se acredita ser liderada por um aliado próximo de Putin.
Propaganda da Rússia contra o "fascismo" na Ucrânia
Em 24 de fevereiro de 2022, o presidente russo Vladimir Putin anunciou uma "operação militar" na Ucrânia para defender os separatistas no leste do país e "desmilitarizar e desnazificar" seu vizinho pró-ocidental. Para justificar a invasão, Moscou vem multiplicando as alegações de que a Ucrânia está sendo invadida por neonazistas.
A propaganda pró-Rússia mistura imagens reais e falsas, como esta foto adulterada do presidente ucraniano Volodimir Zelensky segurando uma camisa de futebol com uma suástica.
Nesse contexto, "eu vejo [Bonov] quase como uma caricatura de um neonazista e, portanto, alguém, infelizmente, 'perfeito' para a propaganda russa neste momento", disse Colborne.
Como a AFP explicou aqui em francês, partes da história ucraniana, como a colaboração temporária entre partes de nacionalistas ucranianos com o regime de Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial, foram exploradas por Moscou. No Twitter, a embaixada russa na África do Sul afirmou que "a Rússia, como há 80 anos, está lutando contra o nazismo na Ucrânia".
Outras partes da história ucraniana que não se encaixam nessa narrativa são ignoradas. "Grande parte dos soldados ucranianos lutou contra os nazistas ao lado do Exército Vermelho, o que não é mencionado hoje", observa Alexandra Goujon, professora de Ciência Política na Universidade da Borgonha e autora de "Ucrânia: da Independência à Guerra".
Em 2017, o embaixador israelense na Ucrânia confirmou que mais de 2.500 ucranianos foram nomeados Justos entre as Nações, um título conferido a não-judeus que salvaram judeus do extermínio durante a Segunda Guerra Mundial.
A narrativa da "Ucrânia nazificada" se intensificou após a revolução laranja em 2004 e a revolução Euromaidan (também chamada de Primavera Ucraniana) que derrubou Yanukovitch. Ambos eventos viram líderes pró-europeus tomarem posse em vez de aliados de Moscou.
Conexões evidentes entre a extrema direita ucraniana e a extrema direita russa, como visto no caso de Bonov, também são ignoradas por canais pró-russos, assim como a presença de elementos neonazistas entre as tropas russas que combatem o estado ucraniano em Donbas desde 2014, como os supremacistas brancos do movimento imperial russo, documentado pela AFP.
Se a extrema direita nacionalista recuperou visibilidade desde seu envolvimento na época do Euromaidan, e por meio de seu envolvimento nas lutas em Donbas e contra a invasão russa, essa visibilidade não se converteu em representação política nacional.
Após os resultados das eleições em 2012, o partido de extrema direita Svoboda agora detém apenas um assento no parlamento nacional. Também não conseguiu reunir mais de 2% dos votos nas últimas três eleições presidenciais. O Corpo Nacional, o braço político do batalhão Azov, concorreu com o Svoboda nas eleições parlamentares de 2019 e não conseguiu garantir nenhum assento.
"Embora seja verdade que os grupos de extrema direita tenham visibilidade no espaço público, sobretudo porque organizam manifestações que não são proibidas, a existência da extrema direita politicamente nas instituições é extremamente limitada do ponto de vista nacional", Alexandra Goujon disse à AFP.