O fato de um purê de maçã ter dado positivo em um teste rápido não prova que estes são ineficazes
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- Publicado em 17 de dezembro de 2020 às 21:52
- 6 minutos de leitura
- Por Eva WACKENREUTHER, AFP Alemanha
- Tradução e adaptação AFP Brasil
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O vídeo, de 2:15 minutos, é compartilhado desde 9 de dezembro no Facebook (1, 2, 3) e Twitter. Nele, uma pessoa exibe um teste de antígenos de covid-19 e uma pequena embalagem de purê de maçã. Em seguida, abre o recipiente e, com o que parece ser um cotonete, coleta uma amostra do purê de maçã e a submete ao kit de diagnóstico. Depois de algum tempo, a pessoa segura o teste na frente da câmera: o resultado é positivo.
“Teste positivo de covid com sobremesa de maçã… parece que está explicado o grande número de infectados por covid… e o sumiço da gripe”, escreveu um usuário ao publicar o vídeo.
Publicações semelhantes circulam em inglês, espanhol, alemão e francês.
Os exames disponíveis para detectar a covid-19 podem ser divididos em três categorias. A primeira inclui os testes de PCR (sigla em inglês para Polymerase Chain Reaction, ou reação em cadeia de polimerase), que analisam se há uma parte muito específica do genoma do novo coronavírus na amostra, mediante um processo bioquímico. O Instituto Robert Koch (RKI) chama este tipo de exame, usado por laboratórios em todo o mundo, de “padrão ouro” para o diagnóstico.
A segunda é a dos testes sorológicos, que verificam se uma pessoa possui anticorpos contra o SARS-CoV-2 no sangue. Os cientistas utilizam este método para estimar quantas pessoas já tiveram uma infecção. O governo da cidade de Buenos Aires, por exemplo, utilizou-o para determinar que 10,1% de sua população tinha a doença em meados de setembro deste ano.
Por último, estão os testes de antígenos, menos precisos que os exames de PCR, mas que fornecem os resultados de maneira mais rápida. Estes testes também são menos sensíveis que os de PCR, o que significa que precisam de uma carga viral mais alta para identificar a infecção. Isso quer dizer que, especialmente se o contágio ocorreu recentemente, o exame de antígenos pode dar “falsos negativos”.
O PCR detecta o material genético do novo coronavírus, enquanto os testes de antígenos são elaborados para identificar as moléculas que envolvem o vírus.
A equipe de checagem da AFP já verificou um vídeo semelhante no qual paramédicos poloneses submetem um suco de frutas ao teste rápido de antígenos e, naquela ocasião, consultou Juan Sabatté, doutor em microbiologia e pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet) da Argentina.
“Estes testes normalmente detectam componentes do vírus SARS-COV-2 mediante o uso de anticorpos específicos”, disse. Ao serem identificados, é gerada uma reação com cores e “em forma de faixa (a linha que aparece indica que é positivo)”.
A Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) indica que “os resultados positivos dos testes de antígenos são muito exatos”, mas adverte sobre “uma maior probabilidade de falsos negativos, o que significa que os resultados negativos não descartam a possibilidade de infecção”. Caso o paciente receba tal resultado, a FDA recomenda confirmá-lo com um exame de PCR.
Um estudo publicado por pesquisadores da universidade de medicina de Berlim Charité, ainda não revisado por pares, concluiu que existem diferenças entre a qualidade destes testes, mas que a maioria apresenta um alto nível de especificidade.
O exame do vídeo
O teste visto no vídeo é um do tipo de antígenos, mais precisamente o “MEDsan SARS-CoV-2 Antigen Rapid Test”. A logo da fabricante pode ser identificada facilmente na gravação.
As instruções do produto da companhia MEDsan indicam que o resultado é positivo quando são vistas duas faixas coloridas. O documento também detalha que o exame só é adequado para examinar “secreções nasofaríngea e/ou orofaríngea em seres humanos” e que o teste “não se destina a ser utilizado para outros fluídos corporais e amostras”.
A AFP não detectou nenhuma manipulação evidente no vídeo viralizado. Consultado pela equipe de checagem da AFP, Kai Markus Xiong, porta-voz da MEDsan, tampouco duvidou da autenticidade do vídeo. No entanto, sinalizou que não é possível ver se o exame foi realizado adequadamente.
“Não sabemos se a pessoa que aparece no vídeo está infectada com o coronavírus e se o exame foi armazenado corretamente”, disse. Ele acrescentou que “a descontaminação adequada e profissional não é possível” quando se trabalha em uma superfície de pano, como parece ser o caso do vídeo.
A pedido da AFP, a MEDsan conduziu seu próprio experimento para recriar o resultado exibido no vídeo. Dois funcionários que haviam testado negativo no exame de PCR submeteram diversas substâncias, como desinfetantes a base de álcool, geleia de morango, limpador de vidros, maçãs e suco de maçã, ao teste de antígeno. Como resultado, obtiveram dois positivos para o desinfetante e um positivo fraco para a geleia.
Para a MEDsan, os resultados destes testes não contradizem a confiabilidade de seus kits: “Não desenvolvemos este produto [para ser usado com] purê de maçã, não é nosso trabalho”. Seu objetivo, explicaram, é que o exame apresente resultados confiáveis em humanos e, portanto, o resultado ao utilizá-lo em alimentos não gera questionamentos sobre sua eficácia para detectar o SARS-CoV-2.
“O teste deve ser considerado como uma ferramenta para ser usada por profissionais treinados”, acrescentou Xiong. Os profissionais devem assegurar-se de que fatores que possam alterar o resultado, como, por exemplo, comidas, não afetem o teste. “Você também não vai estar com a boca cheia quando for fazer um teste desses”, disse.
Condições corretas
A AFP mostrou o vídeo a especialistas em imunologia e bioquímica, que também sinalizaram que as condições nas quais o teste é realizado, particularmente o nível de acidez, são cruciais para obter um resultado válido. Além disso, enfatizaram que esses exames são elaborados para serem utilizados apenas com as amostras para os quais foram avaliados.
“Não é uma conquista distorcer as condições de um teste até que dê resultados falsos”, disse à AFP Thomas Decker, professor de imunobiologia da Universidade de Viena. “O teste foi desenvolvido para permitir a ligação de um anticorpo aos antígenos, não para reagir a certos alimentos”, acrescentou.
O especialista foi contundente e comparou o experimento viralizado nas redes a afirmar que “um carro não funciona mais se colocamos purê de maçã no tanque [de gasolina]”.
No mesmo sentido, Anette Beck-Sickinger, professora de bioquímica da Universidade de Leipzig, na Alemanha, afirmou que este teste, como qualquer processo bioquímico, “só pode funcionar se é realizado sob as condições corretas”.
Para realizar um teste de antígenos nas condições adequadas, a amostra deve, primeiro, ser imersa em uma solução tampão, que permite estabilizar o valor do pH. No entanto, essa solução “não é capaz de neutralizar grandes quantidades de ácido (como as de uma maçã ou uma manga)”, explicou Beck-Sickinger.
Modificar as condições do teste, como o pH ou a temperatura, pode “provocar uma reação não específica dos anticorpos”, causando um falso positivo, detalhou. Ou seja, uma aplicação incorreta do teste leva a resultados incorretos.
Em resumo, o vídeo viralizado não demonstra que os testes de antígenos não são capazes de detectar a covid-19, mas que estes podem fornecer resultados incorretos se forem realizados em condições inadequadas, sem respeitar as indicações do fabricante. Embora os testes rápidos sejam menos confiáveis que outros métodos, como os exames de PCR, se utilizados corretamente podem indicar a existência de uma infecção pelo novo coronavírus.