Nelson Mandela não convidou um guarda que o torturou na prisão para a sua mesa
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- Publicado em 2 de fevereiro de 2021 às 18:24
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- Por AFP México
- Tradução e adaptação AFP Brasil
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“Depois de me tornar presidente, pedi a alguns membros da minha escolta para ir passear pela cidade. Após o passeio, fomos almoçar num restaurante. [...] Foi logo aí que eu percebi que na mesa que estava bem na nossa frente, havia um homem sozinho, esperando ser atendido. Quando foi servido, eu disse a um dos meus soldados: vai pedir a esse senhor que se junte a nós”, conta a história compartilhada no Facebook (1, 2, 3), no Instagram (1) e em sites (1).
A história também circulou em outros idiomas, como inglês e espanhol.
O texto descreve que o homem tremia ao comer, mas não por estar doente. O ex-presidente sul-africano (1994-1999) teria contado: “Aquele homem era o guardião da prisão onde eu estava trancado. Muitas vezes, depois das torturas que me submetiam, eu gritava e chorava pedindo um pouco de água e ele vinha humilhava-me, ria de mim e em vez de me dar água, mijava na minha cabeça”.
Nelson Mandela, prêmio Nobel da Paz em 1993, esteve preso durante 27 anos na África do Sul acusado de traição por sua campanha de violência para acabar com o apartheid, o regime de segregação imposto pela minoria branca sobre a maioria negra durante o século XX nesse país.
Mandela passou a maior parte de seu encarceramento na prisão da ilha Robben, onde foi submetido a trabalhos forçados. Em 1990, foi libertado.
Sem tortura
Razia Saleh, diretora de Arquivo e Pesquisa na Fundação Nelson Mandela, disse por e-mail à equipe de checagem da AFP:
E acrescentou: “Nunca encontramos a fonte e achamos que é uma história inventada”.
Saleh detalhou que, apesar da prisão e das condições deploráveis na cadeia, “o senhor Mandela nunca foi torturado fisicamente ou foi vítima de tais humilhações. Declarou isso publicamente em várias ocasiões”.
Saleh forneceu um trecho de uma entrevista feita com Mandela pela revista Time, na qual declarou: “Passamos por experiências muito duras no início de nossa vida na prisão. Nunca fui atacado brutalmente, mas muitos de meus amigos, sim”.
Verne Harris, chefe de Liderança e Desenvolvimento de Conhecimento na Fundação Nelson Mandela, assinalou à AFP: “A história que vocês citaram é apócrifa”.
“Em muitas ocasiões - incluindo conversas com os membros de nossa equipe de arquivistas - o senhor Mandela detalhou as suas experiências na prisão, incluindo descrições gráficas das duras condições às quais foi submetido e as privações que viveu”, disse.
“Além disso, documentamos vários encontros entre o senhor Mandela e seus antigos carcereiros, e não há nada no registro histórico remotamente similar ao encontro narrado nessa história”, concluiu Harris.
Winnie Madikizela-Mandela, que foi esposa de Mandela entre 1958 e 1996, assinalou em 2014 durante uma entrevista à AFP: “Eles, na prisão, nunca foram torturados como nós fomos”. “Ele era livre para acreditar na paz e nós, que sofríamos a violência do apartheid, não estávamos tão à vontade com esta noção”, explicou, dizendo que para quem lutava fora da prisão “não restou outra opção a não ser responder à violência com violência”.
Uma busca por palavras-chave como “tortura”, “restaurante” e “urina” na versão em inglês da autobiografia “Um longo caminho para a liberdade” e na biografia autorizada “Mandela”, escrita pelo falecido Anthony Sampson, não mostrou nenhuma situação vivida pelo líder sul-africano com as características mencionadas ou relatos de tortura durante os anos que passou na prisão.
A equipe de checagem da AFP também contatou o jornalista John Carlin, autor de vários livros sobre Mandela. Por e-mail, ele afirmou: “Essa história é totalmente inventada”. “É a segunda vez que me mandam. Uma merda total [sic]”, acrescentou.
O jornalista continuou: “Não houve tortura, mas humilhação, muita, por definição. Ou seja, estar em uma prisão em uma ilha, em uma cela apertada, trabalho forçado em uma canteira, usar bermuda no inverno. Mas golpeado, urinado etc, não”.
Em resumo, não há evidências de que Nelson Mandela tenha convidado para a sua mesa um ex-guarda que o torturou durante o tempo em que passou na prisão; tampouco há registros de que tivesse sido torturado durante os 27 anos em que esteve preso na África do Sul.