Macron não deu um golpe de Estado na França; dissolução da Assembleia Nacional é constitucional
- Publicado em 12 de junho de 2024 às 21:40
- 4 minutos de leitura
- Por AFP Brasil
Copyright © AFP 2017-2024. Qualquer uso comercial deste conteúdo requer uma assinatura. Clique aqui para saber mais.
“COMUNISTA MACRON DÁ GOLPE NA FRANÇA”, lê-se no texto sobreposto a uma publicação no TikTok. Conteúdos semelhantes também circulam no Instagram, no X, no Facebook, no Kwai e no Threads.
As mensagens começaram a circular após o presidente Emmanuel Macron anunciar no último dia 9 de junho a dissolução da Assembleia Nacional e convocar eleições legislativas antecipadas para 30 de junho. A medida não afeta seu mandato, que segue até 2027.
A decisão foi tomada após os resultados das eleições para o Parlamento Europeu, instituição legislativa eleita diretamente pelos cidadãos dos países-membros da União Europeia. Na França, que elegeu 81 dos 720 eurodeputados, os partidos de extrema direita Reagrupamento Nacional (RN) e Reconquête levaram quase 40% dos votos.
Contudo, a dissolução da Assembleia Nacional está prevista na Constituição francesa e há limites para a sua aplicação.
Entenda a dissolução
No discurso em que anunciou a dissolução da Assembleia Nacional, Macron observou que a medida está prevista no artigo 12 da Constituição francesa de 1958. Segundo o dispositivo, o “Presidente da República pode, após consulta ao Primeiro-Ministro e aos presidentes das assembleias, pronunciar a dissolução da Assembleia Nacional”. A Constituição também prevê que as novas eleições devem ocorrer entre 20 e 40 dias após a dissolução.
Lívia Ferreira, doutoranda em Direito Público na Université Paris Nanterre e especialista em Direito Constitucional, explica que a França adota um sistema semipresidencial, chamado de Quinta República. “O regime francês não se enquadra na tipologia tradicional de regimes políticos, sendo um sistema híbrido que conta simultaneamente com as características de um sistema presidencial e parlamentar”.
Dessa forma, o presidente, que é eleito pelo voto direto, detém também poderes para dissolver o Parlamento. Ferreira relembra que a dissolução já foi aplicada em outros períodos, como resposta a “crises institucionais ou políticas”: em 1962 e 1968, pelo então presidente Charles De Gaulle; em 1981 e 1988, por François Mitterrand; e em 1997, por Jacques Chirac.
O professor de Direito Constitucional e Administrativo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Daniel Capecchi, aponta que o texto constitucional também prevê limites para esse tipo de medida. “[A dissolução] não poderá, por exemplo, ser utilizada novamente no ano seguinte às novas eleições. Em síntese, trata-se de uma competência presidencial cujas condições e limites têm amparo na própria Constituição francesa”.
Para Capecchi a medida não pode ser considerada um golpe, uma vez que Macron está utilizando um “dispositivo constitucional, de forma absolutamente compatível com o espírito da Constituição”.
Vanessa Alvarez, advogada e mestre em Direito Internacional e em Direito Francês e Europeu pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, concorda que não há “golpe” nem “tentativa de golpe” na decisão anunciada por Macron. “O Presidente da República tem absoluta discricionariedade para verificar as situações em que isso pode ocorrer e, na verdade, o que ele está querendo é renovar a legitimidade dele perante o povo francês”.
Desafios para o governo
Com a votação expressiva recebida pela extrema direita, Capecchi destaca que há a possibilidade de a oposição vencer as eleições legislativas, gerando uma “coabitação”, quando o presidente e o primeiro-ministro são de partidos opostos. Contudo, Macron já não dispunha de maioria absoluta no Parlamento.
Depois do anúncio da dissolução, Marine Le Pen, líder do RN, afirmou que seu partido está “pronto” e que a medida está “em conformidade com a lógica das instituições da Quinta República”. Em maio de 2019, após as eleições para o Parlamento Europeu daquele ano, a política já havia pedido que Macron dissolvesse a Assembleia Nacional.
Kai Enno Lehmann, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), avalia que a dissolução causou “otimismo” entre a oposição. “O grande risco que o Macron está correndo é que ele tem muito pouco tempo para mudar o cenário (...) Tudo indica que a postura na França é para que haja mudanças”.
Lehmann lembra que o premiê espanhol, Pedro Sánchez, adotou uma medida parecida ao dissolver o parlamento em 2023. “A Espanha obviamente tem um sistema diferente, não é um sistema semipresidencial, mas Pedro Sánchez (...) destruiu o Parlamento e convocou novas eleições, que ele ganhou, por pouco, mas ganhou. Há precedentes na Europa dessa tática. Não quer dizer que vai funcionar na França e para ele [Macron]”.
O Checamos já verificou outro conteúdo relacionado às eleições para o Parlamento Europeu.