O Irã não alçou bandeira preta “pela primeira vez na história” como um “símbolo de vingança”
- Este artigo tem mais de um ano
- Publicado em 31 de outubro de 2023 às 14:37
- 5 minutos de leitura
- Por Juliette MANSOUR, AFP França, AFP Brasil
Copyright © AFP 2017-2025. Qualquer uso comercial deste conteúdo requer uma assinatura. Clique aqui para saber mais.
“Pela primeira vez na história, uma bandeira preta é hasteada sobre o santuário do Imam Reza, no Irã. Simbolismo na tradição histórica islâmica de guerra e vingança”, diz uma das publicações que somam mais de 29 mil interações no Facebook, no Instagram, no TikTok, no Kwai e no X (antes Twitter).
Alegações similares também circulam em francês, inglês e espanhol.
Em 17 de outubro de 2023, um ataque ao hospital Ahli Arab de Gaza, pelo qual Israel e palestinos culpam-se mutuamente, provocou um clamor internacional e manifestações ao redor do mundo árabe.
O ataque deixou pelo menos 471 mortos, segundo o Ministério da Saúde de Gaza. No entanto, um alto funcionário da Inteligência europeia estimou o número de mortes em “algumas dezenas”. Uma nota dos serviços de Inteligência norte-americanos dá conta de um balanço de vítimas fatais "provavelmente no extremo inferior da faixa entre 100 e 300".
Israel bombardeia a Faixa de Gaza desde 7 de outubro, quando milicianos do Hamas entraram em Israel e mataram ao menos 1.400 pessoas, principalmente civis que foram baleados, mutilados ou queimados no primeiro dia do ataque, segundo as autoridades israelenses.
O Irã aplaudiu este ataque de escala sem precedentes, embora afirme que não estava envolvido nele.
De acordo com Israel, cerca de 1.500 combatentes do Hamas foram mortos em confrontos até que o Exército retomou o controle da área atacada.
Mais de 8.300 palestinos, em sua maioria civis, foram mortos na Faixa de Gaza em bombardeios incessantes por parte de Israel como retaliação aos ataques do grupo islamista palestino, segundo o último dado divulgado pelo Ministério da Saúde do Hamas em Gaza.
"Luto nacional"
Nesse contexto, publicações virais alegam que, em resposta, o Irã lançou um apelo à guerra através de um gesto simbólico.
Uma busca pelas palavras-chave, em inglês, “governo iraniano”, “Gaza”, “hospital”, “Israel” e “ataque” levou a um artigo em inglês publicado em 18 de outubro de 2023 pela agência de notícias iraniana Tasnim. De acordo com a notícia, o governo iraniano declarou a data como um dia de “luto nacional” devido aos “crimes cometidos por Israel contra os civis palestinos”.
Nesta ocasião, a agência também afirmou, em um artigo em persa, que a fundação de caridade Astan Quds Razavi, responsável pelo mausoléu do imã Reza localizado na cidade de Mashad, no nordeste do Irã, hasteou uma bandeira preta no topo de sua cúpula principal. Não é especificado por quanto tempo a bandeira permanecerá erguida.
The Custodian of Astan-e Quds Razavi has declared that a solemn flag now flies in the holy shrine of the Imam Reza (AS) in response to the heinous act committed by the #Zionist regime in their attack on #Gaza's Al-Ahli Baptist Hospital, which resulted in the martyrdom of hundreds… pic.twitter.com/azTqjYipaY
— Tasnim News Agency (@Tasnimnews_EN) October 18, 2023
O mausoléu do imã Reza é um complexo religioso sagrado para os muçulmanos xiitas — uma das duas principais correntes do islã no Irã — e um importante destino de peregrinação religiosa.
Mas, ao contrário do que é compartilhado nas redes sociais, essa não é a “primeira vez na história” que a bandeira preta é hasteada no topo do mausoléu, e não representa um chamado para “a vingança ou a guerra”.
“Na verdade, a bandeira preta não equivale a uma declaração de guerra, é um sinal de luto. Ela é muito importante para a imensa maioria dos iranianos. Normalmente, ela é alçada todo ano na mesquita Imam Reza durante a Ashura [evento religioso no Islã] e, particularmente, no contexto do Muharram, mês de luto, um momento chave para a fundação do ramo xiita da religião islâmica”, explicou à AFP Pierre Pahlavi, vice-diretor do Departamento de Estudos de Defesa do Canadian Forces College, especialista em política estrangeira e estratégias de influência da República Islâmica do Irã, em 17 de outubro.
A imprensa iraniana noticiou anteriormente que a bandeira foi içada de acordo com essa tradição, como neste artigo de 2019.
Por meio de uma pesquisa no Google Maps, registros como a foto abaixo, de outubro de 2019, também mostram a bandeira preta tremulando no topo do mausoléu Imam Reza.
Por outro lado, ver essa bandeira hasteada fora das festividades de Muharram e Ashura, que terminaram em agosto de 2023, é muito mais raro, como apontam os especialistas.
A agência Tasnim explicou em seu artigo que foi “acompanhando a tragédia humana e o luto de todos, em particular dos muçulmanos ao redor do mundo”, que em 18 de outubro o santuário adotou “uma cor de luto”, enquanto, segundo a Tasnim, “os crimes cometidos pelo regime israelense nos últimos dias atingiram seu clímax na noite de terça-feira, e centenas de palestinos refugiados no hospital Al-Ahli, no centro de Gaza, foram alvo de ataques sionistas”.
Pahlavi recorda, no entanto, que a decisão se encontra “no registro simbólico e retórico, não existe um processo institucional que seja desencadeado pelo hasteamento dessa bandeira”, afirma. “Em uma guerra de palavras e imagens, é mais uma mensagem para todos os muçulmanos e árabes do mundo, para dizer que, com esse ato que desvia da tradição, estão enviando uma mensagem de solidariedade”, completa.
Ameaças iranianas
Teerã alertou repetidamente que uma invasão terrestre da Faixa de Gaza resultaria em uma resposta em outras frentes, intensificando temores de uma conflagração regional.
“A posição oficial dos dirigentes é saudar a ação do Hamas, ao mesmo tempo em que afirmam não terem participado deste ataque”, destacou à AFP Thierry Coville, pesquisador do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas e especialista no Irã, em 19 de outubro.
Sobre o ataque ao hospital, em 18 de outubro o presidente iraniano, Ebrahim Raïssi, declarou que “as chamas das bombas americano-israelenses, lançadas essa noite sobre as vítimas palestinas feridas no hospital (...) em Gaza, em breve devorarão os sionistas”, em citação publicada pela agência Irna.
Para Pahlavi, “é legítimo analisar os gestos simbólicos, como o hastear dessa bandeira, mas isso não representa um sinal de um iminente agravamento do conflito”.
Referências
- Reportagens sobre o “dia de luto” no Irã e o uso da bandeira preta (1, 2)
- Imagem no Google Maps de 2019 com a bandeira preta hasteada no mausoléu do imã Reza