A notificação de extradição enviada por correio a cidadãos ucranianos na Irlanda é falsa

Desde o início de setembro de 2023, usuários compartilharam dezenas de vezes nas redes sociais publicações afirmando que o Departamento de Justiça irlandês, a pedido da Ucrânia, enviou uma carta aos ucranianos residentes na Irlanda com uma notificação de extradição para se juntarem às forças armadas de Kiev. Mas a entidade confirmou que a carta — cuja fotografia ilustra as postagens — é falsa. Além disso, especialistas em Direito europeu explicaram à AFP que o documento contém erros jurídicos.

“Kiev pede a extradição imediata dos refugiados e estes terão que regressar ao país em guerra. A União Europeia falhou”, diz o trecho de uma das publicações que compartilha a suposta carta do governo irlandês no Facebook e no X (antes Twitter).

A carta, supostamente enviada pelo Departamento de Justiça irlandês, é datada de 7 de setembro e endereçada ao “Sr. Ihor Doroshenko”.

O primeiro parágrafo diz: “Estamos escrevendo para informá-lo que o Departamento de Justiça recebeu um pedido do governo ucraniano para a sua extradição. O pedido se baseia na alegação de que você é elegível para o recrutamento obrigatório na Ucrânia e não cumpriu com a sua obrigação legal de servir às forças armadas”.

A carta também circula em espanhol, inglês, polonês e tcheco.

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Captura de tela feita em 3 de outubro de 2023 de uma publicação no Facebook ( .)

O Exército ucraniano lidera uma contraofensiva para fazer com que as forças russas recuem no leste e no sul.

Um documento falso

Contatado pela AFP, o Departamento de Justiça irlandês negou ter enviado a carta, classificando-a como “fraudulenta”.

Após o suposto documento ter viralizado, a entidade emitiu um comunicado, que também foi compartilhado em suas redes sociais: “Tomamos conhecimento de cartas fraudulentas relacionadas com extradição que circulam atualmente e que afirmam ser do Departamento de Justiça”, indica. “Podemos confirmar que essas correspondências não foram enviadas por este Departamento de Justiça”.

A extradição contempla apenas infrações penais

De acordo com a carta, os ucranianos na Irlanda poderiam estar sujeitos a um pedido de extradição por “se recusarem a cumprir a obrigação legal de alistamento nas forças armadas”. Para embasar esse argumento, a carta se refere a duas leis: a Lei irlandesa de Extradição de 1965 e a Convenção Europeia de Extradição de 1957.

Esses dois documentos legais existem e são referência em questões de extradição. O primeiro se refere à legislação irlandesa e o segundo, a nível dos países-membros do Conselho da Europa, organização que conta com 46 Estados, incluindo os 27 membros da União Europeia (UE).

Trata-se de uma instituição separada da UE, cuja missão é “promover a democracia, os direitos humanos e o Estado de direito em toda a Europa e fora dela”.

No entanto, os textos “não preveem um pedido de extradição por motivos como deserção ou recusa de cumprimento do serviço militar obrigatório”, explicou à AFP Araceli Turmo, professora especializada em Direito Europeu na Universidade de Nantes, em 13 de setembro.

A especialista detalhou à AFP que “a Convenção Europeia de Extradição de 1957 não permite a extradição de pessoas por crimes puramente militares” e que “a extradição de alguém não pode ser solicitada com base nisso se o seu único delito tiver sido contra uma norma relacionada a uma obrigação militar”.

“Se um militar cometeu um homicídio e é solicitada a sua extradição, o fato de ser militar não o protege. Ao contrário, se ele cometeu um crime que só existe no âmbito do Direito Militar, essa convenção não pode ser utilizada para formular um pedido de extradição”, acrescentou.

Carolyn Moser, pesquisadora especializada em Direito e Governança da União Europeia, indicou à AFP em 14 de setembro que “a Convenção Europeia de Extradição estabelece no seu artigo 4º que as extradições por crimes militares estão excluídas do seu âmbito de aplicação”.

A especialista acrescentou que “se a Ucrânia quisesse realmente que um país do Conselho da Europa enviasse os seus cidadãos de volta, teria que basear o seu pedido em um delito penal”.

O mesmo se aplica à lei irlandesa. O artigo 4º da Lei de Extradição de 1965 também afirma que a extradição não será concedida por crimes contra o Direito Militar que não constituam crimes segundo o Direito Penal comum.

“A Ucrânia aparentemente está considerando pedir a outros países que extraditem homens que ainda têm idade suficiente para se juntarem às suas forças armadas”, observa Moser, “mas com base em crimes”, especifica, e não, como se lê na carta, porque o destinatário deve respeitar o serviço militar obrigatório.

Ucrânia propôs a extradição de alguns cidadãos

Davyd Arakhamia, líder do grupo parlamentar do presidente Volodymyr Zelensky, disse em entrevista em 1º de setembro de 2023 que os ucranianos sujeitos ao serviço militar que deixaram a Ucrânia com certificados de deficiência falsos poderiam ser extraditados.

No entanto, Moser explicou que a Ucrânia “teria que reunir evidências suficientes para comprovar que a pessoa procurada cometeu um delito ou mesmo um crime”. Por exemplo, “teria que demonstrar que a pessoa pagou um suborno a um funcionário da alfândega, ou que subornou um médico para emitir a ele um atestado falsificado”.

Além disso, acrescentou que “esse crime também deveria ser punível na Irlanda: a reciprocidade é geralmente uma condição sine qua non para a extradição”.

Araceli Turmo complementou ao dizer que a Convenção Europeia não autoriza extradições coletivas. “Deve ser uma pessoa acusada por um ato que cometeu. Não podemos solicitar a extradição de um grupo inteiro”, explicou.

Referências

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