Declarações de emissário da OMS sobre lockdown foram tiradas de contexto

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  • Publicado em 17 de março de 2021 às 17:19
  • 4 minutos de leitura
  • Por AFP Canadá, AFP Brasil
Publicações compartilhadas mais de 20 mil vezes em redes sociais, pelo menos desde o dia 4 de março, tiram de contexto uma declaração de um funcionário da Organização Mundial de Saúde (OMS), David Nabarro, sugerindo que a entidade é contrária ao lockdown para controlar a pandemia do novo coronavírus. Na verdade, ele alertou para as consequências da medida, mas reconheceu sua utilidade em casos em que a transmissão do vírus está fora de controle.

“Será que as porras desses governadores não tem conhecimento disso? Bando de demônios desgraçados", diz uma das publicações viralizadas no Facebook (1, 2, 3), no Instagram (1, 2) e no Twitter.  

A maioria das postagens compartilham uma imagem com o título de uma matéria da revista Veja “‘Nunca advogamos por lockdown nacional’, diz OMS” e duas frases atribuídas a David Nabarro, emissário da OMS: “Apelo para os líderes mundiais: parem de utilizar lockdowns como ferramenta principal, desenvolvam sistemas melhores, trabalhem juntos e aprendam juntos” e “Os lockdowns têm uma consequência que jamais deve ser subestimada, que é fazer os pobres terrivelmente mais pobres ainda”

Outras postagens de conteúdo semelhante também circularam. 

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Captura de tela feita de publicação no Facebook em 16 de março de 2021

O AFP Checamos buscou no Google pelo título da revista Veja e encontrou o artigo que não traz falas de David Nabarro, mas uma carta da OMS esclarecendo a repercussão distorcida de declarações do funcionário da organização ao site da revista semanal britânica The Spectator

Em entrevista em vídeo ao site britânico, no dia 8 de outubro, Nabarro (que não é  “diretor da OMS”, mas emissário especial para covid-19) afirmou que “a Organização Mundial da Saúde não defende o lockdown como o principal meio de controle desse vírus”.

Durante a conversa com The Spectator, Nabarro aconselhou a retomada da vida social e da atividade econômica sem que ela resultasse em um aumento no número de mortes pela covid-19. Segundo ele, isso seria possível com o rastreamento, pelas autoridades sanitárias, dos casos da doença e pelo isolamento dos infectados, além do apoio fundamental da população para aderir a medidas como distanciamento social e uso de máscaras.

Na entrevista, ele realmente diz frases viralizadas: “E, portanto, realmente apelamos a todos os líderes mundiais: pare de usar o lockdown como seu método de controle primário, desenvolva sistemas melhores para fazer isso, trabalhe em conjunto e aprenda uns com os outros. Mas lembre-se: lockdowns têm apenas uma consequência que nunca se deve minimizar, que é tornar as pessoas pobres muito mais pobres”.  

Mas apesar de o emissário da OMS ter pedido a líderes globais que parassem de usar lockdowns como principal medida para combater o vírus, ele reconheceu a sua eficiência quando os governos precisam ganhar tempo para fortalecer seus sistemas de saúde, algo que as publicações viralizadas não mencionam. Nabarro disse:

A declaração aponta, portanto, que a medida é considerada um recurso extremo, mas que, apesar de gerar prejuízos econômicos e sociais, não é descartada pela organização em casos de alta transmissão. 

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Uma rua de São Paulo após o fechamento de serviços não essenciais no estado, pela pandemia de covid-19, em 6 de março de 2021

(Miguel Schincariol / AFP)

Essas postagens são compartilhadas em um momento em que governadores adotam diversas medidas de restrições na tentativa de conter o forte avanço da covid-19 no Brasil.
 

Uma posição de longa data

Em 14 de abril de 2020, um documento da OMS já destacava (pág. 3) a eficácia das medidas de contenção como os “fechamentos” e os "lockdowns” em determinados casos, reconhecendo seus perigos potenciais para a economia e a sociedade.

"Medidas de distanciamento físico e restrições de movimento, muitas vezes referidas como 'fechamentos' e 'contenção', podem retardar a transmissão de covid-19 ao limitar o contato entre as pessoas. No entanto, essas medidas podem ter um impacto negativo profundo para as pessoas, as comunidades e as sociedades, praticamente acabando com a vida social e econômica", ressaltou a organização na época.

Apenas um mês antes, em 11 de março de 2020, o doutor Michael Ryan, diretor-executivo do Programa de Emergência da OMS, esclareceu: "Quando se perde o controle da epidemia, é preciso criar um distanciamento social entre todos. Porque não se sabe quem está infectado. É um substituto insatisfatório para uma ação agressiva de saúde pública no início, mas pode ser a única opção quando efetivamente se perdeu o vírus de vista".

Benoît Barbeau, professor do departamento de ciências biológicas da Universidade de Quebec em Montreal (UQAM), explicou em um e-mail à AFP que, na entrevista, Nabarro “insistiu no fato de que a medida de contenção generalizada é uma medida necessária para evitar qualquer transbordamento quando a situação é crítica, mas que ela não deve ser reutilizada constantemente".

“Assim, a meu ver, a contenção continua a ser uma medida a ser utilizada em situações que o exijam, mas deve dar lugar a medidas eficazes e menos restritivas”, acrescentou.

A pouco mais de um ano do começo da pandemia no Brasil, todos os estados do país enfrentam um aumento do número de mortes pela covid-19, com exceção da Bahia, do Amazonas e do Rio de Janeiro

Apesar da situação calamitosa, que tem impactado fortemente os sistemas de saúde, o presidente Bolsonaro vem se manifestando contrariamente às restrições. No último domingo, 14 de março, seus apoiadores protestaram contra essas medidas. 

O Brasil contabiliza quase 280 mil mortos por covid-19 e mais de 11,5 milhões de casos, segundo o balanço da AFP.

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